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Pintura de Rodolfo Mesquita
Por Urariano Mota.
As notícias nos jornais, que fazem da história real um eterno fla-flu, não deixam dúvida: militares da reserva atacam a presidenta Dilma e a ministra Maria do Rosário, por atos e declarações sobre a ditadura. A presidenta reage, militares fingem um recuo, e o jogo segue, em aparente 1 a 1. Mas a notícia maior, que vem sendo construída há mais de uma geração, fala mais fundo além dos jornais: durante este ano o Brasil passa pela Comissão da Verdade, a partir do Congresso Nacional. Diante disso, o que dizem as vozes estéticas do Brasil, alheias à superfície das páginas do noticiário?  E os que usam a ferramenta exclusiva do verbo,  os escritores, o que temos com isso?
A julgar por suas intervenções públicas, até aqui, nada têm a ver. Entenda-se. Não se exige dos nossos criadores obras de engajamento nas questões de peso da pátria. Não, e seria abusiva e estúpida tal exigência, porque exterior à escrita mais pessoal, onde têm vez e voz o mais íntimo de cada um. Mas escritores escrevem artigos ótimos, crônicas cultas, dão palestras brilhantes, entrevistas maravilhosas, espetáculos do mais fino humor,   e entre uma exposição e outra do precioso ego, bem podiam dizer, falar, sugerir, recomendar algo como, por exemplo, “olhem, tem a ver conosco esta Comissão da Verdade. Ela é do interesse de todos os artistas”. E diante do silêncio de um entrevistador, cujas perguntas vêm antes da entrevista, o escritor perguntaria mais claro:  “Você não quer saber a razão?”. E o show continuaria, se não com mais graça, pelo menos com mais verdade.     
Mas tal não se vê, nem mesmo nos lugares de aparência livre de suas colunas. Por quê? Certo não é covardia. Se apostamos no grau de altura moral dos nossos irmãos, poderíamos dizer que este assunto urgente, de esclarecimento dos crimes da ditadura, para eles não vem à tona por uma certa, digamos, acomodação estética. Talvez uma estética de não ferir a boa vontade do dono, não da sua pessoa, pois nosso escritor é livre, mas de não ir contra a corrente dominante no meio. Ou de respeitar o espaço, que não é gratuito por todas as justiças. Quem trabalha, recebe, é justo. Quem paga, cobra, o que também é justo. Ora vá o escritor famoso à custa do jornal, pelo que  o magnânimo editor acha, ora vá o dono da folha cair na fria de pagar para o que não lhe interessa divulgar. Um absurdo. Se assim fosse, não existiria justiça na terra. 
Para que exista paz nas relações materiais do espírito, passemos a terrenos mais autônomos. Se o escritor nacional se ausenta do debate sobre a memória da ditadura nas aparições onde lhe pagam, onde o tema poderia causar no público um visível desconforto, e escritor, para a maioria no auditório, ou é um palhaço, ou um pop star  ou um bibelô, passemos a outro campo. Passemos, mas de passagem imaginamos o desagradável que seria lembrar assassinatos, torturas e sua impunidade numa conversa educada. Imaginem a indelicadeza. Que assunto mais fora de tema, pois a concepção reinante de literatura se dirige mais para a excelência do criador que para o valor absoluto da realidade.  
Passemos ao terreno mais pessoal, de conversas, de mensagens pessoais, de manifestações de escritores entre amigos. O desencanto é grande. Causa espanto a capacidade que têm os nossos romancistas, poetas, de se ausentar da vida brasileira. A maioria de todos, digamos maioria assim, para ressalvar as exceções, estão metidos na viagem e divulgação da própria criação. Pouco se lhes dá que não só os  séculos, mas o presente histórico, aquele que vai além deste minuto, lhes solte gargalhadas quanto à maravilha de suas crias. Aquela mesma gargalhada que um dia Balzac soltou, em um jantar entre seus pares, ao ouvir de um deles “nós, criadores…”. O magnífico Balzac não se aguentou:
- Nós, criadores?!        
E a gargalhada soou da altura de A Comédia Humana. Assim, para os nossos criadores, pouco se lhes dá agora o riso de Balzac dos séculos. Importa mais estar na onda, numa feliz adaptação do funk, “sou feio, mas estou na moda”. Ora, quando falamos da sua ausência da vida brasileira, como se isso fosse uma qualidade extraliterária, e, acreditem, não o é (perdoem essa construção), queremos dizer: os nossos escritores se ausentam de tudo que não diga respeito à sua extraordinária pessoa. Eles não refletem como agentes sociais, como pessoas que são chamadas à liça, como homens que sentem na própria pele a dor de um semelhante. Perdão, dor de um longinquamente parecido. Mas se assim é no geral, no particular exibem uma descrença – ou ignorância – que chega à raia do absoluto em termos políticos. Aderem fácil, fácil a qualquer onda de descrença em um governo ou pessoa ou idéias de esquerda. Mas isso, essa derrocada,  para eles tem o nome de ironia, pose de mais altos estudos e vivências pós-muro de Berlim.
A esta altura sinto – mas não “sinto muito” – que o título do texto deu lugar a uma crítica negativa. Em outra oportunidade, espero sobressair mais o lugar do escritor do Brasil com os exemplos mais eloquentes de Lima Barreto, Joaquim Nabuco, Drummond, Machado de Assis, Graciliano Ramos…  Agora, prefiro constatar que todos escritores temos uma arma, que está empoeirada sem uso: o nosso talento e sensibilidade para o que os generais e os príncipes jamais ousarão. Pois jamais os poderosos conseguirão algo que remoto lembre um Dom Quixote, um Rosa do Povo, um levante de consciências de levar os nazistas à queima de livros, a ponto de um general de Franco gritar “Morte à Inteligência”.      
No entanto agora, neste minuto, neste presente, a literatura, a poesia do futuro,  vem sendo construída à margem dos escritores. Logo, logo, esperamos, ela tomará o seu lugar, o lugar dela, que é seu por todos os direitos. Não por ora, que estamos cegos e distantes desta notícia:
“Maria Auxiliadora Lara Barcellos atirou-se nos trilhos de um trem na estação de metrô Charlottenburg, em Berlim… tinha sido presa sete anos antes, em 1969, no Brasil. Nunca mais conseguiu se recuperar plenamente das profundas marcas psíquicas deixadas pelas sevícias e violências de todo tipo a que foi submetida. Durante o exílio, registrou num texto… ‘Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, de grito no escuro…’”
Por enquanto, essa breve tragédia ainda não fura a espessa couraça de nossos literatos.  É só uma nota na tela. 
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