De Ismael Benigno, um dos líderes do Movimento Manaus de Olho
Não há teste melhor para avaliar a natureza humana do que perguntar
às pessoas o que elas acham da menininha do vestidinho curto, estuprada
no beco da esquina.
38 horas se passaram. Estou sentado na varanda de um apartamento
alheio. Num dos quartos, repousam uma pequena mala de viagem, dois pares
de sapatos, uma sacola com xampu, uma mulher e uma criança de 3 anos.
Não há tevê ligada, conversas pela casa. Só o som do trânsito lá
embaixo. É assim que decidi tentar, depois de poucas horas de sono,
escrever sobre as eleições no Amazonas.
A lógica sussurra aqui do lado, desde a madrugada
de domingo, me lembrando de separar as coisas, mas a tentação de
misturar tudo é grande. Nunca fui de espalhar pequenas notas ao longo do
dia, friamente separando assuntos, como se alguns deles não me fossem
caros. Quando falo, falo do que penso e sinto. E o que ocorreu nas
últimas 38 horas tem tudo misturado, o terror de um drama familiar
ocorrido exatamente num dia de eleição. Política é do que venho falando
há tempos, mas minha vida é o que venho vivendo há mais tempo ainda. Não
consegui separar a gema da clara, o que vivemos quase nunca é algo
diferente de um omelete.
Não dormi a noite da última sexta para o sábado. Uma árvore derrubou
os fios elétricos da rua, ficamos sem energia de 16h até 3h40 da manhã
de sábado. Passei a noite, como muitos, “dormindo” sentado e suado. Na
tarde de sábado, cansados, eu e minha esposa decidimos levar o
Marquinhos para a vó, para podermos descansar. Paramos no Galvez
Botequim, a tarde pós temporal estava gostosa.
Minutos depois, meu querido Jan Rinaldo passou ali e nos viu. Ia à
praça do Caranguejo ver um jogo de futebol com o Silvio Silva. Saiu
dizendo que voltaria. Voltou pouco tempo depois, com o Silvio. Então
outras pessoas foram chegando, a mesa aumentando. A conversa era sobre
as eleições do dia seguinte, e a preocupação era com o fechamento dos
bares com a Lei Seca. Como a conversa só melhorava, decidimos sair dali,
comprar umas cervejas enquanto era tempo e ir para a minha casa.
Vários casais de amigos chegaram. Era meio tarde, todos foram sem
seus filhos. Rodrigo, Geórgia, Bruno, Larissa, Breno, Andrya, Sandro, a
namorada, Gustavo, Bianca, além de Hamilton, Vitor, Emanuel e Robson.
Bianca e Gustavo, que se tornaram nossos amigos sem qualquer convívio
pessoal, decidiram conhecer a minha casa naquela noite. Durante a
semana toda, envoltos com o drama de outro casal de amigos, Marcos e
Carolina, falávamos de marcar um almoço ou jantar, juntar as crianças,
fazer algo divertido que nos ajudasse a recobrar energias para ajudar os
pais da Ana Luiza, que em São Paulo começa a sua luta contra um câncer
violento aos 7 anos de idade.
Às duas da manhã, pelo que me contaram, eu trocava um disco no carro,
dentro da garagem da minha casa, quando a Hellen, minha esposa, correu
na minha direção. — Ismael, é um assalto! Olhei para o portão, e meus
amigos eram empurrados por três homens para dentro, todos armados e com
camisetas na cabeça.
Um deles me empurrou, anunciou o assalto, e a meio metro do meu rosto, atirou pro alto.
Outro homem empurrou o Rodrigo lhe dando uma coronhada na cabeça. Nos
fizeram deitar lado a lado no gramado, de bruços. Havia pouco espaço,
uns ficaram sobre os outros. Algumas mulheres choravam. Me lembro de ter
segurado a perna de alguém que se mexia demais, e temi que aquilo fosse
virar uma chacina, afinal nos deitaram todos lado a lado, no gramado da
frente da casa, que não tem muro frontal, apenas grades finas. Pensei
que aquele assalto estava estranho, pela exposição da cena a quem
passasse pela rua.
Mesmo àquela hora, vários carros costumam entrar e
sair do conjunto, minha pequena rua é a “porta” do Jardim Versalles.
Nos revistaram todos. Lembrei do dinheiro que tinha no bolso, que
aquilo era a maior parte do que teríamos pro mês, e pensei em tirá-lo
dali e esconder. Fui vencido pela possibilidade de ser visto e que a
cena fosse confundida com uma reação. Depois de 5 ou 6 minutos de
revista geral, não tínhamos mais nada, relógios, jóias, dinheiro,
telefones. Imaginei que tudo tivesse acabado.
Então um dos bandidos nos mandou levantar e caminhar em pares, ali,
de frente para a rua, pra dentro da casa. Trancaram os homens no
banheiro social, levaram as mulheres pro meu quarto. Era tudo muito
silencioso, e esse era o problema. No banheiro, pensamos nas mulheres.
Comecei a chorar, lembrando do assalto sofrido pela Hellen alguns anos
atrás, quando um bandido encostou um cano de espingarda na sua nuca e
pisou nas suas costas. Graças àquele assalto ela, que até então era
líder de turma de faculdade e encabeçava equipes nas empresas onde
trabalhava, nunca mais conseguiu sequer falar para 10 pessoas em
público. Sofreu de pânico durante meses, até hoje tem medo de quase
tudo.
Fomos postos juntos novamente, todos no quarto de casal, pequeno por
causa do guarda-roupas e da escrivaninha. Havia gente amontoada sobre o
meu colchão, gente debaixo da mesa e em frente ao guarda-roupas. Os
bandidos falavam baixo e calmamente. Perguntaram quem era o dono da
casa, eu respondi.
Disseram que queriam “o dinheiro, as jóias”.
Nossa casa tem dois quartos pequenos, dois pequenos banheiros, uma
cozinha e uma sala. São 60 metros quadrados de chão rodeados de nada. De
um lado, duas casas desocupadas, uma delas por causa de um roubo, meses
atrás. Do outro lado, um matagal que há cinco anos a construtora
prometia tornar uma área de lazer. Atrás duas casas ocupadas, outra
delas refeita depois de esvaziada também por ladrões. Em frente, um
imenso terreno baldio, de propriedade da construtora, onde até cinco
anos atrás prometia aos clientes que seia um condomínio de apartamentos.
Ali foi construído um muro, semanas depois destruído a “pesadas”. Um
desses vãos foi aberto em frente à minha casa. Pedimos por duas vezes
que a construtora refizesse o muro, mas nunca fomos atendidos.
Foi dali, daquele vão escuro, que saíram os bandidos que nos atacaram.
De volta ao quarto. Eu disse algo como “olha o tamanho da nossa casa, não temos mais
dinheiro nem jóias, muito menos cofre.” Ele perguntou quem era o
policial dali. Lembrei do Rodrigo, agente administrativo da Polícia
Federal, e ele disse “sou eu”. o líder dos bandidos levantou o tom,
disse pra ninguém tentar nada. “Tô a fim de matar um policial hoje”,
disse para um dos comparsas. A Bianca precisou segurar a Geórgia, esposa
do Rodrigo. Eu e os outros homens fomos levados para o banheiro do
quarto, nos fundos da casa.
No quarto, recomeçou o terror das mulheres.
As bijuterias da Hellen foram arrumadas por ela mesma. Meu computador de
mesa foi meticulosamente desligado e desmontado. Um aparelho de som de
carro, sem a parte da frente, roubada tempos atrás em outro roubo, foi
deixado pra trás.
Um deles acalmou minha esposa: “Não vamos fazer nada, só queremos o
dinheiro e as jóias”. Ela tornou a dizer que não tínhamos mais nada. No
banheiro, alguns de nós já sussuravam entre si, tentando ensaiar uma
reação, e foram repreendidos pelos demais. O Bruno nos lembrava de
nossas esposas e que estavam todos armados ali fora.
Nova revista nas mulheres. Algumas foram assediadas fisicamente,
inclusive a Hellen. Com o rosto perto da janela do banheiro, notei que,
desde o início do ataque, não ouvira sequer um carro passar na rua, o
que era raro. Fora do quarto, outro bandido desligava no quarto do
Marquinhos e também cuidadosamente, meu notebook. Deve ter separado
computador, cabo de força e carregador calmamente, pois no lugar de tudo
deixou uma lata de refrigerante vazia.
O som do carro lá fora pareceu parar, mas segundos depois voltou. Era
um deles, dentro do carro, colocando o disco no modo de repetição,
enquanto tirava da capa minha máquina fotográfica, guardada no
porta-luvas. Outra máquina, igualzinha à primeira mas com defeito, foi
deixada pra trás. No outro quarto, os brinquedinhos foram tirados de
cima do tocador de DVD, desconectado e levado. A tevê de 20″ foi
deixada. Livros foram revirados, o rack da sala revistado, mas tudo
abandonado. Nas prateleiras e no rack, romances, livros políticos e de
humor, além de discos de jazz e rock, todos intactos.
O som da música ficou abafado novamente, e depois o silêncio foi
total. Ali dentro do banheiro, espremidos, havia oito homens, no quarto
mais oito mulheres, e o silêncio era o de uma cena pós-execução
coletiva.
Demoramos a decidir sair do banheiro, que não estava trancado, e nos
juntamos às mulheres. Não sabíamos se os bandidos ainda estavam do lado
de fora. O Rodrigo achou um telefone deixado pra trás e ligou para a
polícia uma, duas, três vezes. Ninguém atendia. Então ligou para um
colega da PF, que o atendeu e pegou o endereço. Um pequeno barulho nos
fez voltar ao banheiro. Mais minutos depois, voltamos para junto delas.
Dali ao próximo movimento, foram mais cinco minutos de indecisão e medo.
Abri uma fresta na persiana no quarto, tentei ver alguma sombra.
Não vi nada e tomei coragem de abrir a janela. Quando coloquei a
cabeça pra fora e olhei pro lado, um vulto apontou uma arma para a minha
cabeça e gritou “A casa tá cercada!”. Meu reflexo foi voltar pra dentro
e sussurrar apavorado: “Eles ainda tão aí…”
Novo pânico. Então novo grito: “É a polícia! A casa tá cercada!”
“Eles já foram!”, um de nós gritou. Uma viatura da ROCAM, acionada
pela Polícia Federal, e outra da própria PF, estavam lá fora. As portas
trancadas foram arrombadas pelos PMs. Ainda não havia a sensação de
alívio, o estado era de choque coletivo. Chorei abraçado à Hellen,
depois tentei descobrir como estavam todos. A cabeça do Rodrigo tinha
marcas de sangue, foi examinada pela Bianca. Dos cinco ou seis carros
estacionados no meio-fio, um faltava, o Fiat Idea preto com documentos
em nome de Bianca Abinader.
Saimos do quarto devagar. Explicamos tudo aos policiais, deixei a
casa do jeito que estava, com portas e cadeados arrombados, e fomos
todos ao 10 DP, na Estrada dos Franceses. Um funcionário nos avisou que a
delegacia estava sem sistema desde o dia anterior. Perguntamos se
podíamos registrar o ocorrido manualmente. Nada feito.
Descobrimos, minutos depois, que um primo do Rodrigo, convidado por
ele, passou em frente à casa. Viu os carros abertos, a música tocando,
mas não havia ninguém. Desconfiou da cena e correu para o mesmo 10 DP,
onde contou ter batido por vários minutos na porta de vidro, sem
qualquer resposta.
Nos reunimos novamente e decidimos ir a uma delegacia na estrada do aeroclube, não lembro o número.
Ali, a mesma informação: sistema fora do
ar desde o dia anterior. Pelo rádio, um atendente tentava descobrir se
havia alguma delegacia com sistema. Eu fiquei ao lado dele, e vi que
ninguém respondia aos chamados. Ele se desculpou, explicou que podia
registra o furto do carro, mas não o resto do crime. Disse que um colega
no 1 DP, na Praça 14, nos atenderia, e que aparentemente por ali havia
sistema no ar.
Chegamos ao 1 DP, na Duque de Caxias. Uma senhora nos atendeu e disse
que sim, o sistema estava mesmo no ar, mas muito lento. Sentei de
frente pra ela, comecei a explicar o que tínhamos passado. Atrás dela,
um aparelho de ar-condicionado encardido suava e pingava, ao lado de uma
foto do governador. Não havia copos descartáveis, escrivão nem delegado
presente.
Dois minutos depois, ela parou de me ouvir, perguntou as horas para
uma colega, ficou sabendo que já eram 5h30 da manhã. Depois disso,
continuei falando, e só parei quando percebi que ela não olhava mais pra
mim nem para o computador. Perguntei qual era o problema, e ela disse
que sistema tinha caído. Mas me tranquilizou: “Olha, tá lento demais
mesmo, mas daqui a pouco volta. Se o sr. quiser esperar lá fora…”.
Perguntei onde ficava o banheiro, e ela me indicou. Não havia papel
ou sabão, lavei meu rosto e me juntei aos outros. Por trás da delegacia,
a claridade do dia já estava alta. Voltei para dentro, para perguntar
se o sistema já voltara. Um funcionário da delegacia, acredito que o
mesmo que avisara ao colega pelo rádio que o sistema estava ok, me
avisou que a moça do B.O. tinha ido embora.
Eram 5h40, ele me explicou que o turno dela tinha acabado, e que a
única viatura presente ali tinha levado ela e uma colega, aquela que lhe
avisara sobre a hora, para casa. O funcionário me ensinou: “Acabou o
turno delas, mas daqui a pouco, seis horas, chega o pessoal aí”.
Esperamos até 6h20 da manhã. Eu me rendi, decidi ir embora. Uma dor
de cabeça me tirava a calma, e todos combinamos de nos encontrarmos
hoje, depois da eleição, para tentarmos novamente registrar,
oficialmente, aquela hora inteira que passamos dentro da minha casa.
Conseguimos isso hoje, ao meio-dia.
Ouvi algumas pessoas falando, ao longo dessas 38 horas, sobre a
reeleição de Omar Aziz, sobre o fracasso de Arthur Neto, sobre o sucesso
do meu amigo Marcelo Ramos e sobre a derrota de Alfredo, Serafim, e de
seu filho, Marcelo, que tentava se reeleger deputado federal.
Ouvi outras pessoas falando do deputado mais votado, Belarmino Lins, e
do resultado geral de mais essa festa da democracia estadual.
Honestamente, não lembrei de quase nada. Dirigi sem notar buracos nas
ruas ou sequer semáforos fechados e abertos. Passei as últimas 38 horas
enxergando em todos os estranhos aquela camiseta enrolada no rosto e o
gesto suspeito de quem vai sacar um revólver. Chorei pouco, mas
copiosamente, ao lembrar do meu filho, seguro na casa da avó.
Senti muita vergonha dos meus amigos por terem passado aquilo dentro
da minha casa. Lembrei do rosto da Larissa, mãe de três filhos, com os
olhos vidrados de tristeza, como se um nada tivesse tirado algo muito
importante dela. Lembrei do choro da Geórgia, mãe de duas crianças, por
medo do marido morrer.
Lembrei da Hellen, mãe do meu filho, soluçando de
medo, e vi no rosto dela todo o terror de anos atrás voltar.
Hoje olhei para a casa onde vivi estes cinco anos como quem diz
adeus. Acariciei portas, sentei no sofá, olhei pro vazio da janela. Vi o
portão do mesmo ângulo da hora do ataque, revi a cena do tiro a meio
metro. É a minha casa, que venho pagando há cinco anos, os 60 metros
quadrados que tenho de área construída no meu mundo.
E não era mais ela. Revendo a cama, lembrei dos meus amigos ali,
amontoados feito cadáveres. Revendo o gramado, lembrei do choro de
alguém desesperado, a esposa de algum amigo meu. Revi a mesa, com pratos
e copos intactos, um corte de carne abandonado na churrasqueira,
cigarros nos cinzeiros, e não consegui mais ouvir nenhuma das muitas
risadas que dei ali, com aqueles ou com outros amigos.
Todos os almoços e jantares sumiram com aquele choro, aquele tiro,
aquele gosto de terra na boca. Minha casa não é mais a minha casa. É
agora apenas um ponto iluminado no meio do nada. Com o que sofremos, dos
bandidos e do sistema de segurança da minha terra, decidi que era hora
de me entregar.
Vi o pai da Bianca, num fim de madrugada, na porta de uma delegacia,
chorando abraçado à filha. Sei que ele chorou muito esse ano. Vi meu
filho perguntar com medo hoje, quando eu disse que eu ia voltar à nossa
casa: “Mas os bandidos já foram embora?”. Ouvi a Hellen, desesperada
ainda horas depois de tudo, dizer que tudo o que estamos passando é por
minha causa, por causa do que eu escrevo.
Não é algo fácil de ser ouvido, mesmo que eu venha ouvindo isso de outras tantas pessoas há tanto tempo.
Porque eu teimava em não entender
como pode alguém viver com medo por criticar um deputado, um vereador,
um prefeito, um governador. Eu tentei, esse tempo todo, convencer os
outros de que não quero revolução nem grandes mudanças. Pra ser sincero,
eu não quero nada, porque nunca acreditei nisso. Não critiquei
políticos na esperança de que se mancassem, critiquei apenas porque
cresci num país onde isso sempre foi permitido, com a certeza de que não
há nada mais sagrado do que o direito de um cidadão de criticar a
política do seu país. Se não pudermos falar de político — sempre pensei
–, vamos falar de quem?
Mas é preciso reconhecer derrotas pessoais. Morreu ontem a minha
ideologia única, a da sensação de que posso ter a minha opinião, sem que
meus dentes, os ossos do meu filho ou a cabeça da minha esposa estejam
em risco por causa disso. Não pretendo, de forma alguma, relacionar o
ataque à minha casa com algo político. Não é essa a relação que faço. Há
algo bem maior do que as violências diárias que todo amazonense sabe
reconhecer. Achar que ser assaltado e agredido num dia de eleição tenha
algo a ver com a eleição é simplista, ingênuo e de certa forma
pretensioso. O problema não é o medo que passei, é a certeza de que
posso passar muito mais, e o pior, com a sensação de que eu merecia tudo
isso.
À medida que escrevia isso, me lembrei do cordão de deputados,
Belarmino Lins à frente, meses atrás, da tribuna, alegando que o
professor Gilson Monteiro, espancado em sala de aula na frente dos
alunos, tinha feito por merecer. Lembrei da médica Bianca, que depois de
fazer piada com uma foto de uma autoridade, voltou a ser trucidada em
praça pública debaixo de mentira, como no início do ano, mas dessa vez
com o apoio de pessoas comuns como ela, transformadas em bichos por um
motivo político.
Linchamentos públicos são fascinantes do ponto de vista social,
porque são a demonstração da capacidade humana de desligar o dijuntor
coletivo da razão, como se num transe coletivo todo tipo de gente, de
médicos a jornalistas, de procuradores a professores, de profissionais
liberais a operários de fábrica, todos, despidos de discernimento,
tivessem dúvidas sobre o que é humano ou não, sobre o que é crime ou
não.
Quando essa dúvida ganha corpo, quando um cidadão é linchado em praça
pública (por uma piada infeliz ou não, não interessa) e outros cidadãos
como ele aprovam a cena, é hora de sentir medo. Porque é da paixão que
nasce o arbítrio, é da convicção coletiva que nasce o estado policial.
Quando a linha do bom senso fica enevoada, é hora de estocar água,
comida, remédios, comprar cadeados reforçados e se trancar em casa.
Quando se é ameaçado de morte por causa de um texto, é hora de levantar
acampamento. O que me preocupa não é o prefeito, o deputado ou o
governador que manda prender ou agredir seus críticos. O que me preocupa
é quando alguém da platéia grita um “é isso mesmo!” e um aplauso tímido
começa a surgir.
O humorista Danilo Gentili, famoso na televisão e na internet, é
desses que abusam do direito de fazer piada de mau gosto, e mesmo assim,
até onde sei, nunca foi ameaçado de morte nem teve sua família
humilhada em público. Hoje disse no Twitter que Marina Silva merecia uma
Bolsa Família, numa alusão à magreza da candidata do PV.
Eu acho o Danilo um completo imbecil, mas não acho que ele merece
apanhar ou ser perseguido por causa disso. Alguém hoje, ao saber do
assalto que sofremos e traçando uma relação sem sentido entre as coisas,
disse: “Taí, foram comprar briga e bater de frente com esse pessoal…”
Pra ser honesto, nessas 38 horas eu tive foi medo de contar tudo isso
acima e ouvir alguém dizer que quem sabe, talvez, há uma possibilidade
de que nós tenhamos feito por onde para passar o que passamos. O medo
não acabou nos tiros, nas coronhadas ou na violência toda. Depois do
terror do ataque, olhei ao meu redor, vi as pessoas que estavam comigo e
imaginei uma garota, depois de ser estuprada, ouvir a vizinhança
comentando “também, com uma roupa dessas, queria o quê…”
Quando vivemos da forma que temos vivido, passando pelo que temos
passado, e saímos do inferno recebendo notícias de que, exatamente
naquele mesmo dia, o povo decidiu que a vida está indo bem e que quer
mais nas urnas, a única conclusão possível é a de que o errado sempre
fomos nós. Não porque eu seja contra o governo, mas porque achei que eu
podia falar.
Eu nunca quis ou me importei de ser ouvido, escrevi diariamente os
três primeiros anos deste blog sem ter leitores. Não me interessava ser
lido, me interessava poder falar.
Eu sei admitir os meus erros.
Este foi um deles.
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