Carta Maior
Na sexta-feira, durante o ato de assinatura em Brasília, pela presidenta da República Dilma Rousseff, da lei que cria a Comissão da Verdade, estava previsto, entre outros, o pronunciamento de Vera Paiva, filha do ex-deputado socialista Rubens Paiva, assassinado e desaparecido durante a ditadura militar. Ela acabou não falando. Sua participação teria sido cancelada por pressão dos militares. "Assim começa muito mal... Não fui desconvidada, simplesmente não falei!", relata Vera Paiva.
Seguem as anotações da minha fala que foi
cancelada, segundo os jornais, por pressão dos militares. Assim começa
muito mal... Não fui desconvidada, simplesmente não falei! A minha
volta diziam que a Presidenta Dilma tinha que viajar e encurtaram a
cerimônia, que alguém tinha falado um tempo a mais. Sai para uma reunião
na UNB, ainda emocionada com o carinho que dispensou aos familiares e
ex-presos políticos, um a um. Agora entendo o pedido de desculpas da
Ministra Maria do Rosário.
Sexta-feira, 18 de Novembro de 2011, 11:00. Palácio do Planalto, Brasília.
Excelentíssima
Sra. Presidenta Dilma, querida ministra dos Direitos Humanos Maria do
Rosário. Demais ministros presentes. Senhores representantes do
Congresso Nacional, das Forças Armadas. Caríssimos ex-presos políticos e
familiares de desaparecidos aqui presentes, tanto tempo nessa luta.
Agradecemos
a honra, meu filho João Paiva Avelino e eu, filha e neto de Rubens
Paiva, de estarmos aqui presenciando esse momento histórico e, dentre as
centenas de famílias de mortos e desaparecidos, de milhares de
adolescentes, mulheres e homens presos e torturados durante o regime
militar, o privilégio de poder falar.
Ao enfrentar a verdade
sobre esse período, ao impedir que violações contra direitos humanos de
qualquer espécie permaneçam sob sigilo, estamos mais perto de enfrentar
a herança que ainda assombra a vida cotidiana dos brasileiros. Não falo
apenas do cotidiano das famílias marcadas pelo período de exceção.
Incontáveis famílias ainda hoje, em 2011, sofrem em todo o Brasil com
prisões arbitrárias, seqüestros, humilhação e a tortura. Sem advogado de
defesa, sem fiança. Não é isso que está em todos os jornais e na
televisão quase todo dia, denunciando, por exemplo, como se deturpa a
retomada da cidadania nos morros do Rio de Janeiro?
Inúmeros
dados indicam que especialmente brasileiros mais pobres e mais pretos,
ou interpretados como homossexuais, ainda são cotidianamente agredidos
sem defesa nas ruas, ou são presos arbitrariamente, sem direito ao
respeito, sem garantia de seus direitos mais básicos à não discriminação
e à integridade física e moral, que a Declaração dos Direitos Humanos
consagrou na ONU depois dos horrores do nazismo em 1948.
Isso
tudo continua acontecendo, Excelentíssima Presidenta. Continua
acontecendo pela ação de pessoas que desrespeitam sua obrigação
constitucional e perpetuam ações herdeiras do estado de exceção que
vivemos de modo acirrado de 1964 a 1988.
O respeito aos direitos
humanos, o respeito democrático à diferença de opiniões assim como a
construção da paz se constrói todo dia e a cada geração! Todos, civis e
militares, devemos compromissos com sua sustentação.
Nossa
história familiar é uma entre tantas registradas em livros e exposições.
Aqui em Brasília a exposição sobre o calvário de Frei Tito pode ser
mais uma lição sobre o período que se deve investigar.
Em março
deste ano, na inauguração da exposição sobre meu pai no Congresso
Nacional, ressaltei que há exatos 40 anos o tínhamos visto pela última
vez. Rubens Paiva, que foi um combativo líder estudantil na luta “Pelo
Petróleo é Nosso”, depois engenheiro construtor de Brasília, depois
deputado eleito pelo povo, cassado e exilado em 1964. Em 1971 era um bem
sucedido engenheiro, democrata preocupado com o seu país e pai de 5
filhos. Foi preso em casa quando voltava da praia, feliz por ter jogado
vôlei e poder almoçar com sua família em um feriado. Intimado, foi
dirigindo seu carro, cujo recibo de entrega dias depois é a única prova
de que foi preso. Minha mãe, dedicada mãe de família, foi presa no dia
seguinte, com minha irmã de 15 anos. Ficaram dias no DOI-CODI, um dos
cenário de horror naqueles tempos. Revi minha irmã com a alma partida e
minha mãe esquálida. De quartel em quartel, gabinete em gabinete passou
anos a fio tentando encontrá-lo, ou pelo menos ter noticias. Nenhuma
notícia.
Apenas na inauguração da exposição em São Paulo, 40
anos depois, fizemos pela primeira vez um Memorial onde juntamos família
e amigos para honrar sua memória. Descobrimos que a data em que cada um
de nós decidiu que Rubens Paiva tinha morrido variava muito, meses e
anos diferentes...Aceitar que ele tinha sido assassinado, era matá-lo
mais uma vez.
Essa cicatriz fica menos dolorida hoje, diante de
mais um passo para que nada disso se repita, para que o Brasil consolide
sua democracia e um caminho para a paz.
Excelentíssima
Presidenta: temos muitas coisas em comum, além das marcas na alma do
período de exceção e de sermos mulheres, mãe, funcionária pública.
Compartilhamos os direitos humanos como referência ética e para as
políticas públicas para o Brasil. Também com 19 anos me envolvi com
movimentos de jovens que queriam mudar o pais. Enquanto esperava essa
cerimônia começar, preparando o que ia falar, lembrava de como essa
mobilização começou. Na diretoria do recém fundado DCE-Livre da USP,
Alexandre Vanucci Leme, um dos jovens colegas da USP sacrificados pela
ditadura, ajudei a organizar a 1ª mobilização nas ruas desde o AI-5,
contra prisões arbitrárias de colegas presos e pela anistia aos presos
políticos. Era maio de 1977 e até sermos parados pelas bombas do Coronel
Erasmo Dias, andávamos pacificamente pelas ruas do centro, distribuindo
uma carta aberta a população cuja palavra de ordem era
HOJE, CONSENTE QUEM CALA.
Acho
essa carta absolutamente adequada para expressar nosso desejo hoje, no
ato que sanciona a Comissão da Verdade. Para esclarecer de fato o que
aconteceu nos chamados anos de chumbo; quem calar consentirá, não é
mesmo?
Se a Comissão da Verdade não tiver autonomia e soberania
para investigar, e uma grande equipe que a auxilie em seu trabalho,
estaremos consentindo. Consentindo, quero ressaltar, seremos cúmplices
do sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas por essa herança de
horror que agora não está apoiada em leis de exceção, mas segue
inquestionada nos fatos.
A nossa carta de 1977, publicada na
primeira página do jornal o Estado de São Paulo no dia seguinte,
expressava a indignação juvenil com a falta de democracia e justiça
social, que seguem nos desafiando. O Brasil foi o último país a encerrar
o período de escravidão, os recentes dados do IBGE confirmam que
continuamos um país rico, mas absurdamente desigual... Hoje somos o
último país a, muito timidamente mas com esperança, começar a fazer o
que outros países que viveram ditaduras no mesmo período fizeram. Somos
cobrados pela ONU, pelos organismos internacionais e até pela Revista
Economist, a avançar nesse processo.
Todos concordam que
re-estabelecer a verdade e preservar a memória não é revanchismo, que
responsáveis pela barbárie sejam julgadas, com o direito a defesa que os
presos políticos nunca tiveram, é fundamental para que os torturadores
de hoje não se sintam impunes para impedir a paz e a justiça de todo
dia. Chile e Argentina já o fizeram, a África do Sul deu um exemplo
magnífico de como enfrentar a verdade e resgatar a memória. Para que
anos de chumbo não se repitam, para que cada geração a valorize.
Termino insistindo que a DEMOCRACIA SE CONSTRÓI E RECONSTRÓI A CADA DIA. Deve ser valorizada e reconstruída a CADA GERAÇÃO.
E que hoje, quem cala, consente, mais uma vez.
Obrigada.
***
Depois
de saber que fui impedida de falar ontem (sexta-feira), lembro de um
texto de meu irmão Marcelo Paiva em sua coluna, dirigida aos militares:
“Vocês
pertencem a uma nova geração de generais, almirantes,
tenentes-brigadeiros. Eram jovens durante a ditadura (…) Por que não
limpar a fama da corporação?
Não se comparem a eles. Não devem nada a
eles, que sujaram o nome das Forças Armadas. Vocês devem seguir uma
tradição que nos honra, garantiu a República, o fim da ditadura de
Getúlio, depois de combater os nazistas, e que hoje lidera a campanha no
Haiti."
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