Na madrugada de terça-feira, durante o assalto ao acampamento
do Occupy Wall Street,a polícia de Nova York adotou métodos primitivos. A
entrada da imprensa na área da operação polícial foi vetada. Ydanis
Rodriguez, um membro do parlamento local, foi agredido e preso, quando
tentava encontrar-se com os manifestantes. Houve mais 200 prisões, uso
generalizado de gás pimenta e golpes de cassetete. Uma biblioteca de 5
mil livros foi atirada a um contêiner de lixo.
Mas estas cenas de
brutalidade são apenas um aspecto menor da operação. Notícias
publicadas ontem (15/11) nos jornais norte-americanos, e análises de
mais fôlego na imprensa alternativa, revelam algo mais grave.
Articulou-se nas últimas semanas, nos Estados Unidos, um esforço
policial coordenado, com objetivo de suprimir um movimento que, embora
tenha sempre agido de modo pacífico, passou a ser encarado como uma
ameaça ao status quo. A investida contra o Occupy reflete a
militarização das forças de segurança dos EUA, cada vez mais voltadas a
identificar e combater “inimigos internos” — e equipadas com sofisticado
armamento “high-tech” contra eles.
Embora a decisão de desocupar
praças caiba, institucionalmente, aos prefeitos, a ação policial está
sendo tramada nacionalmente. Mais de 40 chefes de polícia das cidades em
que o Occupy montou acampamentos mantiveram reuniões constantes nas
últimas semanas, muitas vezes por meio de videoconferências. O objetivo
dos encontros foi trocar informações sobre as formas mais eficazes de
promover a desocupação. Pretende-se evitar, sobretudo, episódios
constrangedores para as forças da ordem, nos quais a resistência
pacífica as obriga a recuar.
O planejamento foi especialmente
meticuloso contra o Occupy Wall Street, revelou o New York Times. Houve
duas semanas de treinamento, mas os policiais envolvidos não foram
informados, em nenhum momento, sobre o alvo e as circunstâncias de sua
futura ação. Temia-se a mobilização social. Uma tentativa anterior de
esvaziar o acampamento, em 14 de outubro, fracassou porque, informados
previamente, os manifestantes conseguiram convocar apoio.
O último treinamento foi feito na noite de segunda-feira, 14/11. Mesmo
então, segundo o jornal, não se mencionou o Zucotti Park — ou Praça da
Liberdade, como foi rebatizada pelos acampados. Na convocação dos
policiais falou-se apenas em “um exercício”. A decisão atacar o Occupy
foi comunicada “apenas no último momento”.
Centenas de agentes
foram mobilizados. O momento da operação foi escolhido meticulosamente.
Sabia-se, depois de semanas de observação, que na madrugada de segunda
para terça-feita o acampamento estaria mais vazio. O parque foi isolado
por barreiras de policiais armados com escudos. No momento da
desocupação, não era aproximar-se a menos de cem metros do local. Os
jornalistas que já estavam na área foram retirados: a polícia alegou que
desejava proteger sua “segurança”.
Que leva a polícia de um país
que se orgulha de respeitar as liberdades civis a se voltar para a
repressão contra protestos pacíficos? Num texto publicado também ontem,
no siteAlternet, Heather “Digby” Parton, uma blogueira norte-americana
premiada pela profundidade de suas análises (publicadas costumeiramente
em Hullabaloo) , procura as respostas. Ela as encontra, principalmente,
no que vê como três décadas de militarização das forças policiais
norte-americanas. Primeiro, para enfrentar a chamada “guerra contra as
drogas”; mais tarde (a partir do 11 de setembro), para a vigilância
interna, adotada a pretexto da “guerra contra o terror”.
Desde
1980, reporta “Digby”, a polícia norte-americana tem sido preparada para
assumir um número crescente de atividades de caráter mais tipicamente
militar. Esta mudança se expressa em aspectos como o armamento e os
uniformes policiais. Equipamentos como os fuzis M-16 e veículos
blindados tornaram-se comuns – inclusive em unidades instaladas nos
câmpus universitários.
A partir de 2001, esta tendência assumiu
nova dimensão. As forças policiais foram envolvidas na vasta operação do
governo Bush para ampliar a vigilância sobre os cidadãos. A lei
“Patriot Act”, até hoje em vigor, permitiu violar o sigilo de
comunicação e rastrear as operações financeiras. Criado na época, o
Departamento de Segurança Interior (Department of Homeland Security)
passou a coordenar as ações de espionagem interna. Tornou-se,
rapidamente, a terceira maior agência estatal dos EUA. Tem orçamento
anual de 55 bilhões de dólares. Horas após o ataque contra Occupy Wall
Street, o cineasta Michael Moore lançava, pelo twitter, uma questão
ainda não respondida: terá o departamento participado da operação contra
os manifestantes?
Ainda mais importante, introduziu o conceito
de “terrorismo doméstico”, orientando as forças da ordem não apenas
contra os crimes tradicionais — mas contra um leque amplo e impreciso de
atividades, que pode facilmente incluir a oposição política. As
consequências foram explicitadas em 2006 por Joseph McNamara, ex-chefe
de polícia de San Jose. Ele afirmou que, o novo cenário havia produzido
“uma ênfase em treinamento paramilitar, que, em contraste com a antiga
cultura, sobrepõe-se ao treinamento policial — segundo o qual, os
policiais não deveriam atirar, exceto para se defender”.
Um dos
aspectos mais controversos da nova postura foi a utilização costumeira
de armas consideradas “menos-letais”. Digby conta que os teasers (que
produzem choques elétricos e podem, em certas circunstâncias, matar) são
apenas a ponta de iceberg de um vasto arsenal — utilizado, por
enquanto, apenas em situações de treinamento. Ele é inteiramente voltado
para a dispersão de protestos. Inclui, por exemplo, o ray
gun,Posicionado no alto de um veículo e disparado contra uma
manifestação, ele produz, nos que estão à frente, a sensação de um “soco
invisível”, que provoca intensa dor e impede de continuar caminhando.
Sintomaticamente, foi testado, em exercícios na Geórgia, contra soldados
vestidos de manifestantes que portavam cartazes com dizeres como “Paz
Mundial”, “Amor para todos” e “Paz, guerra não!”.
Ainda mais
espantosos são os planos para desenvolver armas como teasers com alcance
de cem metros ou, mesmo, aviões não-tripulados (“drones”), capazes de
criar grandes “áreas de exclusão”, ao bombardeá-las com dardos virtuais
que produzem choques elétricos. (Para descrição das armas, Digby
baseou-se numa extensa reportagem de Ando Arike, publicada na revista
Harper’s.
Ao final de seu
texto, Digby debate uma questão política crucial. A militarização da
polícia foi impulsionada no período imediatamente posterior aos ataques
de 11 de Setembro. Na época, o choque provocado pelo terror e a onda de
patriotismo que se seguiu garantiram amplo consenso social em favor das
medidas de vigilância. O secretário de Defesa (e depois vice-presidente)
Dick Cheney chegou a afirmar que “o Estado precisa tirar suas luvas”.
Este
tempo passou. Numa época em que o terrorismo deixou de ser uma ameaça
visível e crescem, em contrapartida, os protestos contra a desigualdade,
o desemprego e o esvaziamento da democracia, qual será a conduta das
forças policiais agora orientadas também contra alvos que podem incluir a
dissidência civil, e dotadas de novo armamento? Como elas agirão, se os
novos movimentos recusarem-se a receber ordens — que julgam ilegítimas —
para refrear seus protestos?
As respostas estão em aberto. O que
ocorreu em Nova York em 15/11 não é uma fatalidade, mas serve de
alerta. Se a construção de uma sociedade mais justa inclui manter e
ampliar as liberdades civis, então será preciso conhecer em
profundidade, denunciar e reverter esta nova ameaça de desconstrução da
democracia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário