Cynara Menezes, via CartaCapital
Caro ex-presidente e ex-professor da USP Fernando Henrique Cardoso
Não lhe escrevo essa carta, na verdade não existe carta nenhuma, porque
falar de maconha é um tema proibido em nosso País. Nos
últimos anos, o senhor tem inclusive contribuído para trazer este debate à
tona, ao propor publicamente a descriminalização da maconha em palestras e com
o documentário Quebrando o tabu. Mas nem mesmo o senhor, sendo idolatrado
pela mídia do jeito que é, tem sido capaz de romper a hipocrisia que reina no
Brasil em torno deste assunto. Até marcha pela descriminalização é proibida por
aqui, como se a liberdade de expressão não valesse para a “erva maldita”.
O senhor deve ter assistido à tragédia da Polícia Militar invadindo a
Universidade de São Paulo, onde estudou e ensinou. As cenas foram tristes para
quem, como a sua geração, lutou pela democracia: soldados apontando fuzis na
cara de estudantes desarmados. É verdade que eles haviam tomado a atitude
extrema de invadir a reitoria da Universidade, mas veja só como tudo começou.
Há duas semanas, policiais que estavam ali para defender a comunidade
universitária de assaltos e estupros, abordaram três garotos que estavam
fumando um mísero baseado no estacionamento da Faculdade de História e os
levaram para a delegacia. Seguiram-se conflitos e protestos que culminaram na
invasão da reitoria.
Se pudesse escrever estas palavras, eu perguntaria ao senhor: quem
provocou quem? Quem eram os donos da casa e quem eram os forasteiros? Quem
chegou disposto a criar confusão reprimindo hábitos das pessoas que fazem parte
daquele lugar? Fumar maconha é proibido por lei e não posso falar isto para um
ex-presidente, de forma alguma, imagina. Mas se eu pudesse, diria que aposto
que, em tantos anos na USP, o senhor deve ter visto inúmeras vezes cenas
semelhantes às que os policiais reprimiram. Ou, no mínimo, sentido o cheiro
familiar dos cigarros de maconha sendo acendidos, sempre discretamente, aqui e
ali em recantos aprazíveis da Cidade Universitária.
Se a hipocrisia reinante me permitisse, eu argumentaria que fumar
maconha no campus é um hábito disseminado e tolerado há décadas não só na USP
como em quase todas as universidades do País – e, desconfio, do mundo. É como
se o ambiente universitário fosse um oásis, onde o jovem em formação tem a
liberdade para conhecer coisas novas, existencial e intelectualmente falando:
livros, pessoas, música, cinema, arte. E, algumas vezes, maconha. De causar
estranheza naquele local, é, isso sim, a presença de policiais militares
fazendo a ronda: a rigor, a segurança do campus não deveria ser militarizada,
mas de responsabilidade de uma Guarda Universitária.
Mas já que o governador, de seu partido, e o reitor, alarmados com o
assassinato de um aluno dentro do campus, acharam por bem assinar um convênio
com a Polícia Militar, eu gostaria muito de pedir ao senhor, mas não posso, que
pudesse lhes aconselhar um pouco de bom senso. Jamais escreveria absurdos
assim, de jeito nenhum, longe de mim. Mas o ideal seria que o senhor, em
primeiro lugar, lembrasse a eles que um dia foram jovens como os estudantes que
foram levados à delegacia naquele primeiro momento. Tenho certeza que muitos
pais como eu não gostariam de ver seus filhos sendo presos por um delito tão
insignificante quanto fumar um baseado junto a um grupo de colegas de
faculdade.
É uma pena que não possa lhe dizer também que pondere com o governador
e o reitor que policiamento no campus é para coibir assaltos e estupros, não
para reprimir estudantes que estão pacificamente fumando um beck e conversando
sob uma árvore qualquer. Que correr atrás deles é uma perda de tempo e é uma
incitação ao conflito, que voltará a ocorrer em situações similares. Não é
porque policiais apontaram armas na cara de estudantes que os estudantes
deixarão de fumar baseados –ou de reagir quando forem reprimidos. E, olha só, o
senhor nem precisaria aparecer, poderia fazer isso tudo discretamente, bem ao
gosto dos que tentam dourar a pílula e fingir que a maconha não existe. Enfim,
não posso lhe falar nada disso: é ilegal, imoral e ainda por cima tira votos.
Mas, ah, se eu pudesse…
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