isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
Paulo Leminsky
Outubro
veio e passou nos deixando em novembro de mais um ano no sistema
capitalista. Neste ano lembramos os 140 anos da Comuna de Paris e muitas
atividades pipocaram por todo o Brasil e pelo mundo saudando a ousadia
operária que assaltou os céus em 1871. Recentemente, em 2007,
comemoramos os 90 anos da revolução russa. Enquanto isso, jovens e
trabalhadores tomam as ruas em várias partes do mundo e se declaram
indignados.
O sentido
mais comum da palavra refere-se à revolta diante de uma injustiça ou
afronta, sentimento contrário ao ato que se caracteriza como desumano,
cruel, injuriante, ultrajante. Também associado ao ato de raiva e
exasperação, irritação intensa.
O movimento que se autodenominou como Occupy Wall Strett (ocupem
Wall Street) e que se alastrou por mais de 25 cidades norte-americanas
desde setembro deste ano tem sido identificado como um bom exemplo desta
indignação que parece tomar conta de algumas pessoas antes tão pacatas e
acomodadas nas benesses do chamado primeiro mundo. Tentando acalmar a
ordem, o senhor Richard Locke (não sabemos se carrega além da
coincidência do nome algum parentesco com o famoso John Locke, mas
certamente algumas de suas ideias) afirma que tais manifestações não
podem ser identificadas com nenhuma intenção extremista contra o sistema
vigente, completando: “é apenas uma manifestação difusa em torno da
profunda infelicidade diante das condições econômicas dos Estados
Unidos”.
O chefe da
cadeira de Ciência Política do MIT (Massachusetts Institut of
Technology) acredita que aqueles que estão ocupando as ruas e praças
buscam apenas um “sistema econômico menos ganancioso e corrupto”.
Estamos diante de dois fenômenos que nos chamam a atenção: primeiro a
tendência de alguns analistas em atribuir sua intencionalidade aos
fenômenos que estudam; segundo o persistente equívoco na compreensão das
ações de massa e sua relação com a intencionalidade dos processos
históricos.
Enquanto
alguns se animam mais do que devem com as manifestações acreditando que
ali já emerge um questionamento societário de caráter socialista, o que
de fato não é, outros procuram se acalmar, como Locke, acreditando que
não passa de uma “manifestação difusa” de descontentamento.
Quando os
trabalhadores de Paris, em 1871, tomaram a cidade, não o fizeram para
iniciar a transição socialista ou inventar a nova forma do Estado que
nos levaria ao comunismo, da mesma forma as mulheres e os operários
russos que marcharam na greve geral de fevereiro de 1917 foram
certamente movidos por uma grande insatisfação com as condições
econômicas e, principalmente, com os efeitos da Guerra.
Se o senhor
Richard Locke estivesse por lá com seus incríveis cabedais científicos
do MIT diagnosticaria que não traziam a intenção definida de uma ação
extremista contra o sistema vigente e almejavam apenas um sistema menos
ganancioso e corrupto, ou mais precisamente, um sistema que não os
deixasse tão infelizes.
Os
trabalhadores russos, anos antes da epopéia revolucionária, em janeiro
de 1905, marcharam ao Palácio do Czar em São Petersburgo para entregar
um abaixo assinado à Nicolau II no qual diziam:
“Estamos
numa situação miserável, somos oprimidos, sobrecarregados co excesso de
trabalho, insultados, não nos reconhecem como seres humanos, somos
tratados como escravos. Para nós, chegou aquele momento terrível em que a
morte é melhor do que a continuidade do sofrimento insuportável.”
Mesmo diante
de tal situação eram certamente poucos aqueles que tinham a clareza que
na base de seus sofrimentos se encontrava uma forma histórica de
organização social que precisava ser superada e, um número infinitamente
menor daqueles que já lutavam com a intencionalidade de ir além da
forma histórica que se preparava para substituir as ruínas da autocracia
czarista. Reagiam à fome, à miséria, a indignidade.
Quem lhes explicou
claramente do que se tratava foi a guarda czarista que atirou nos mais
de cem mil manifestantes e depois sufocou a rebelião operaria de 1905 a
golpes dos sabres cossacos.
Na Paris
operária tratava-se, como sabemos de defender a nação contra os
invasores prussianos, depois defender a cidade contra os traidores de
Versalhes e inicialmente conquistar, finalmente, apenas o direito de
eleger seu próprio governo sem as mediações do voto censitário, do veto à
participação das mulheres e estrangeiros, ou seja, de todas as
limitações que buscam garantir que os pobres e trabalhadores não
participem da democracia. Quando Thiers massacrou os rebeldes e afirmou
que “a ordem, a justiça, a civilização alcançaram finalmente a vitória”,
é possível que muitos começassem a duvidar do que exatamente seria a
“civilização” e o tipo de “justiça” que a embasava.
Por isso a
frase do senhor Locke, segundo a qual não se trata de um questionamento
do sistema vigente, mas só de uma “profunda infelicidade diante das
condições econômicas dos Estados Unidos”, expressa, como muitas das
grandes constatações da chamada “ciência política”, um juízo
perfeitamente correto que não nos serve de nada. A verdadeira questão
estaria na busca da compreensão do porque e contra o que se expressa a
indignação dos manifestantes.
Quando o
senhor Locke lê os cartazes dos manifestantes afirmando que “somos 99%
da população que não toleramos mais a ganância e a corrupção dos 1%
restantes”, vê apenas uma vaga intencionalidade por um regime menos
corrupto e ganancioso. Ele percebe bem esta dimensão e procura se manter
neste nível da aparência. Os participantes e o próprio cientista
político partilham de um elemento do senso comum que afirma que o
problema do capitalismo não é a acumulação privada da riqueza
socialmente produzida, mas o exagero ganancioso da acumulação, ou seja,
se os capitalistas tivessem o bom senso de acumular menos e com isso
garantir uma boa qualidade de vida, todos sairiam ganhando.
O desenrolar
dos fatos pode contribuir decisivamente para superar em parte o senso
comum dos participantes, embora seja um pouco mais pessimista quanto as
possibilidades do cientista político do MIT. Quando os manifestantes se
aglomeram nas praças e atacam os banqueiros e financistas, a polícia
prontamente vem para desalojá-los e as prisões começam (só em outubro
foram mais de 700 presos).
Ficamos sabendo por um artigo de Amy Goodman
no Democracy Now que J.P. Morgam e o Chase Mahatan Bank doaram
U$ 4,6 milhões de dólares à Fundação da Polícia da Cidade de New York,
ao mesmo tempo em que os banqueiros receberam cerca de 1 trilhão de
dólares para aliviar seus problemas com a crise.
Às vezes a
realidade assume contornos didáticos. Mesmo para um povo submetido ao
mais aprimorado e eficiente controle ideológico, certas coisas começam a
ficar claras. Antes, entretanto, vejamos porque aquelas pessoas estavam
profundamente infelizes.
Existiria
hoje no país mais rico do mundo cerca de 43, 6 milhões de pobres, algo
em torno de 14,3% da população, cerca de 50 milhões de pessoas não tem
acesso a nenhum tipo de seguro de saúde, 16 milhões de pessoas passam
fome e 49 milhões só não passam fome porque tem precários vales de
alimentação. O desemprego oficialmente está sondando os 10% (entre os
negros os números oficiais são de 16% de desempregados) da população,
dizem que as cifras reais chegam aos 17 % e a crise afetou uma questão
básica que é a moradia.
Para tentar
sair do desespero os trabalhadores norte-americanos estão trabalhando
100 horas a mais do que há 20 anos (as mulheres 200 horas a mais). Tudo
isso em um mundo onde se profetizou o fim do trabalho!
Ao mesmo
tempo, entre 1979 e 2006, 1% da população mais rica passou de 10% da
concentração da riqueza produzida para 23% (mesmo índice que estava
presente em 1929). Esta concentração indica que 90% do total da riqueza
produzida nos 25 anos de euforia foi parar na mão de menos de 10% da
população mais rica e concentrou-se em 1% dela.
Marx e Engels, na obra A ideologia alemã, diziam o seguinte:
“Quanto
mais as formas normais das relações sociais e, com ela, as condições de
existência da classe dominante acusam a sua contradição com as forças
produtivas avançadas, quanto mais nítido se torna o fosso cavado no seio
da própria classe dominante, fosso que separa esta classe da classe
dominada, mais natural se torna, nestas circunstâncias, que a
consciência que correspondia originalmente a esta forma de relações
sociais se torne inautêntica; dito por outras palavras, essa consciência
deixa de ser uma consciência correspondente, e as representações
anteriores, que são tradicionais deste sistema de relações, aquelas em
que os interesses pessoais reais, etc. eram apresentados como interesse
geral, degradam-se progressivamente em meras fórmulas idealizantes, em
ilusão consciente, em hipocrisia deliberada.”
É natural que em uma situação como essa os norte americanos que pensavam yes we can, passem a pensar: we cannot accept this!
É de se esperar que as palavras entorno das quais se estruturava uma
visão de mundo sob a qual se ocultava os interesses de classe da
burguesia monopolista se tornem inautênticas e assumam feitio de pura
hipocrisia deliberada.
Quando Roma
estava para cair, os bárbaros se amontoavam em seus portões, não para
invadi-la militarmente, há muito estavam militarmente derrotados, mas
para tentar passar seus muros buscando sobreviver como escravos. No
final do feudalismo o poder dos senhores que um dia se legitimará pelo
dever de proteger os servos atrás dos muros de seus castelos, assumia
cada vez mais a forma do direito de massacrá-los.
O paradoxo
que se esconde nas formas aparentes do senso comum liberal é que esta
doutrina política se funda na crença do protagonismo do indivíduo ao
mesmo tempo que está convicta de que os indivíduos se inserem em um todo
que caminha por seus próprios desígnios, ou seja, o mercado. Dessa
maneira cada um busca seu interesse egoísta, mas magicamente desta soma
de egoísmos resulta o chamado bem comum. A solução liberal do paradoxo
está na noção de grandes homens, personalidades excepcionais que vem
além dos homens comuns e dirige a história para a intencionalidade
desejada.
Norbert Elias trata desta maneira a questão:
“Pelo
menos é impossível constatarmos que qualquer pessoa dos séculos XII ou
mesmo XVI tenha conscientemente planejado o desenvolvimento da sociedade
industrial dos nossos dias. Que tipo de formação é essa, esta
‘sociedade’ que compomos em conjunto, que não foi pretendida ou
planejada por nenhum de nós, nem tão pouco por todos nós juntos? Ela só
existe porque existe um grande número de pessoas, só continua a
funcionar porque muitas pessoas, isoladamente, querem e fazem certas
coisas, e, no entanto, sua estrutura e suas grandes transformações
históricas independem, claramente, das intenções de qualquer pessoa em
particular.”
Em
outra passagem o mesmo autor diria: “de planos emergindo, mas não
planejada / movida por propósitos, mas sem finalidade”. Elias, apesar de
captar bem um momento do real contra as pretensões ideológicas mais
grosseiras do pensamento liberal, tem uma certa dificuldade em encontrar
um finalidade histórica além daquela atribuída aos indivíduos e a
substitui pela ideia de “processo”. Nós, os marxistas, estamos convictos
que por trás desta aparente caótico choque de vontades individuais
encontra-se um complexo de ações e determinações recíprocas que
constitui uma totalidade que é muito mais que a soma das partes.
Poucos
naquelas praças, ou mesmo ninguém, deseja o fim do capitalismo, mas ao
se colocarem em luta movidos por uma materialidade que transforma em pó
os véus ideológicos que encobriam os interesses da grande burguesia
monopolista, ao se chocarem na prática com estes interesses se produz
uma fusão que os leva além de suas vontades individuais ou mesmo
coletivas que os moveram até aquele momento e se tornam, na prática,
parte de uma ação que assume contornos anticapitaistas, não por seus
desejos e intenções originais, mas pela natureza das forças contra as
quais se chocam e os interesses materiais contra os quais se defrontam.
No que tudo
isso vai dar? Ainda não sabemos, mas que o mundo está ficando muito mais
interessante do que o senhor Richard Lock imagina, temos certeza. Como
diz uma música do Zé Pinto (compositor de várias das músicas cantadas
pelo pessoal do MST), “se não houver amanhã, brindaremos o ontem”, então
viva a Comuna de Paris, viva a Revolução Russa. Estamos convencidos de
que haverá um amanhã, único problema é que talvez seja muito ruim, mas
aí as pessoas vão ficar profundamente infelizes e quem sabe saiam às
ruas e formem algo além da mera indignação.
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