Por Lincoln Secco.
Como filmar a
biografia de alguém que não deixou rastros nem imagens? O
revolucionário brasileiro Carlos Marighella esteve quase sempre
mergulhado na luta clandestina contra as ditaduras brasileiras.
A diretora do filme Marighella,
Isa Grinspum Ferraz, logrou definir o herói que também é o seu tio,
apanhando a dimensão política filtrada pelo cotidiano. Seu filme é
montado em torno de pistas. A diretora concatena entrevistas, músicas,
fotografias e cenas de época sem uma narrativa didática de nossa
história.
Ao contrário, a totalidade das contradições da sociedade
brasileira se forma nos olhos do espectador a partir de uma bela colagem
em que as fases de uma história de opressão e busca da liberdade são
mediadas pela biografia de um personagem que foi capaz de expressar o
seu tempo.
Poucos
revolucionários brasileiros encarnaram ideologica e “biologicamente” o
nosso povo, como acentua Antonio Candido em depoimento no filme. Carlos
Marighella era italiano, negro, baiano, comunista e poeta. Homem de
tantas dimensões já seria em si e por si mesmo difícil defini-lo. Como
falar do revolucionário cuja maior parte da vida se passou na prisão ou
na clandestinidade?
Entre tantos méritos, o filme tem o de mostrar Marighella como um quadro político de primeira ordem e não como um aventureiro.
Em suas
análises, ele nos deixou um legado teórico de coragem, pois chamava a
Ditadura pelo seu nome e não pelos eufemismos tão comuns na vida
acadêmica de ontem e de hoje. Para ele, havia no Brasil uma tirania
fascista. É claro que faltava ao Brasil uma mobilização de massa para
sustentar tal análise. Como dizia Florestan Fernandes, nem isso as
elites das classes dominantes tiveram capacidade de fazer. No entanto,
quando Marighella usava a expressão “fascismo militar” estava optando
por um “conceito forte”, capaz de mobilizar simultaneamente a leitura
que desvenda a natureza do regime e a a prática que o denuncia.
Carlos
Marighella, como os depoimentos do filme mostram, também cometeu erros
de avaliação da conjuntura. Mas mesmo assim, sua opção pela tática da
guerrilha urbana demonstrou-se essencialmente certa. Ele percebeu que o
fascismo militar, ao impor-se pela violência e pelo terror, produzia o
seu contrário: a violência revolucionária. No entanto, a violência dos
guerrilheiros era, nos termos de Mao Tse-tung, justa, pois visava
eliminar uma tirania.
Sem a luta
dos guerrilheiros no Brasil, a ditadura poderia ter se estendido no
tempo e restringido ainda mais suas opções de abertura controlada. É
verdade que a Ditadura se utilizou da guerrilha como pretexto para
recrudescer sua violência. Contudo, ela também usou o simples movimento
pacífico de massas para isto. A guerrilha foi necessária acima de tudo
para o povo. Com ela, os brasileiros mostraram que não sofreriam calados
e que a coragem naquela altura tinha um nome: Carlos Marighella.
***
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia.