"A
genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha
com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos".
Assim é
iniciado aquele que talvez se constitui como o exercício teórico mais
interessante e oportuno escrito por Michel Foucault no que diz respeito à prática
historiográfica; texto perturbador e impertinente, despretensioso na amplitude
de suas pretensões.
Trata-se daquelas linhas que são lidas como que por uma
imperiosa necessidade de leitura, sobre as quais os olhos não cessam nem
conseguem cessar de depositar seus olhares, através das quais o pensamento se
volta para si mesmo, suspende-se a si próprio e recomeça, a partir dele mesmo,
um novo pensamento.
A
genealogia espreita os acontecimentos tidos como sem história no anseio de
reencontrar o momento em que ainda não aconteceram.
Isto não quer dizer, em
absoluto, uma pesquisa de origem, este "desdobramento meta-histórico das
significações ideais e das indefinidas teleologias".
A
genealogia é a paciente procura dos começos históricos, lá onde não há uma
identidade originária, apenas o disparate dos acasos, daquilo que é já
começado.
Ela aponta em direção ao lugar onde a história ainda guarda em si seu
caráter mesquinho, baixo, pouco nobre e demasiadamente modesto.
O estudo das
origens leva, quase que necessariamente, ao abrigo seguro dos deuses, das
verdades imutáveis; a genealogia indica as verdades ainda não verdadeiras, o
lugar onde os deuses se rendem a impetuosidade da história.
O
genealogista não recua, pela continuidade do tempo, ao momento do
não-esquecimento, nem pretende fazer reviver no presente algum passado
qualquer, dar novo alento as suas vozes, fazê-las, mais do que ecos ainda
audíveis de ruídos já emudecidos pelo tempo, o som original dos cantos
gloriosos de ontem.
Ele trata da proveniência, do lugar onde os acontecimentos
são acasos e não causalidades; ele faz descobrir "que na raiz daquilo que
nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas a
exterioridade do acidente".
A
genealogia quer apreender, não o lento deslocar da coroa por sobre as cabeças
dos príncipes, mas, uma a uma, em sua própria dispersão, as feridas abertas nos
corpos dos pequenos homens (o que não exclui os monarcas), as chagas expostas
ao tempo: "ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história
arruinando o corpo".
A
história não é devir, porém emergência: espaço sem dono do aparecimento súbito
e do confronto entre os corpos e deles com o tempo.
Ela é sem responsabilidade,
anônima e acidental.
"Enquanto que a proveniência designa a qualidade de
um instinto, seu grau ou seu desfalecimento, e a marca que ele deixa no corpo,
a emergência designa um lugar de afrontamento".
Emergência dos homens,
emergência das verdades, emergência das histórias; a perenidade do mundo na
inconstância absoluta do tempo: "nada no homem – nem mesmo seu corpo – é
bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles",
assim, "a história será ‘efetiva’ na medida em que ela reintroduzir o
descontínuo em seu próprio ser".
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