Poliglota, viajante incansável, marxista desde sua
juventude, profundamente humanista, amante da música e das artes, escritor
combativo e aguerrido. Amigo do Brasil, apreciador do “chorinho” carioca,
perdemos um grande intelectual, um dos poucos homens com o “coração no lado
certo do peito”.
Francisco Carlos Teixeira _ Carta Maior
O grande debate – “uma formidável tempestade”, conforme a
expressão do historiador britãnico Richard Henry Tawney (1880-1962) – deu-se
nos anos entre 1950 e 1980 na historiografia ocidental, sem dúvida alguma o
mais profundo e radical, quando iniciou-se a publicação das pesquisas,
volumosas, do historiador inglês, Eric Hobsbawm. Este, nascido em Alexandria no
Egito em 1917, de origens judias, possui, na sua própria biografia, a dupla
característica de um típico homem do “Empire” – as origens, a diversidade
social e étnica, os amplos deslocamentos geográficos e, acima de tudo, o
cosmopolitismo – com a tradição cultural judia do “fin de siècle” da Europa
central. Poliglota, viajante incansável, marxista desde sua juventude,
profundamente humanista (embora o pessimismo tenha cobrado um preço bastante
forte na sua vida e obra), amante da música e das artes, escritor combativo e
aguerrido. Amigo do Brasil, apreciador do “chorinho” carioca, perdemos um
grande intelectual, um dos poucos homens com o “coração no lado certo do
peito”.
O Atlântico e a "Primavera dos Povos”
No conjunto das obras sobre o tema – “The Age of Revolution:
Europe, 1789-1848”, publicada em 1962; “The Age of Capital: 1848-1875”, de
1975; “The Age of Empire: 1875-1914”, de 1987 e “The Age of Extremes: the short
twenthieth century, 1914-1991”, de 1994 - esta unicidade é estabelecida com
clareza, em contradição direta, e mesmo a definitiva recusa, das tradições
historiográficas “whig” (liberal) e “tory”(conservadora) sobre uma pretensa
especificidade da história inglesa.
Hobsbawm, militante comunista já em 1931, quando estudava em
Berlim – ele se filiará ao Partido Comunista em 1936 – tomará da tradição
historiográfica alemã o conceito de “Era”, traduzido para o inglês como “Age”,
que marcarão, de forma intencional, a unicidade dos movimentos descritos e,
ainda, do conjunto da obra do autor. A ideia de “Era” emerge na historiografia
alemã com o seu decano Leopold von Ranke (1795-1886), quando publica seu
trabalho normativo e seminal “As Grandes Potências” ( “Die Groβe Mächte”), de
1836. Para Ranke “era” é descrita conforme a palavra tomada do francês – a
língua culta dos séculos XVIII e XIX –“epoche” (mais tarde, germanizada como
“Zeitalter”). A “epoche”, “age”, “Zeitalter” ou “era” descreve um período
cronológico que unifica e dota de um mesmo sentido, com um papel definido e um
significado estabelecido na História, um conjunto de fenômenos.
A herança humanista alemã
Assim, os sucessivos livros de Hobsbawm, seguindo a
historiografia derivada de Ranke na tradição alemã, constituem-se em uma
proposição de periodização da História Contemporânea: Era das Revoluções, Era
do Capital, Era dos Impérios, Era dos Extremos. Cada “momentum” na história
teria seu valor especifico e seu papel estabelecido, num encadeamento dotado de
sentido e de conteúdos específicos. Na recusa das tradições anteriores,
Hobsbawm segue a noção de uma “História Universal” (ao menos do Ocidente),
rejeitando a proposição de História “nacional” (e a constante busca metafísica
das “especificidades nacionais” – “Sonderweg”ou da ação de seguidos “gênios” ou
“Geist” na História -, com autonomias e especificidades, não comparáveis.
Também aqui a presença de Ranke é marcante, expressa na
compreensão da História Contemporânea como uma história derivada da unidade
fundamental dos povos do Ocidente, inscrita nas suas origens na decomposição do
Império Romano e na emergência – abarcando agora germanos, latinos e eslavos –
de uma “Res Publica Christiana”. Na Época Moderna, a grande expansão europeia
trará o “Novo Mundo”, esta nova “extrema Europa”, para o conjunto da História e
dará ao Atlântico o seu papel de eixo integrador do Ocidente. Assim, apropriando-se
de conceitos da historiografia romântica de Ranke, mesmo que Hobsbawm mova-se
para um universo marxista, os ensinamentos da Universidade de Berlin sobre a
unicidade fundamental dos povos do Ocidente – e o seu corolário, toda a
História é sempre História Universal – marcará a obra de Hobsbawm, assegurando
seu cosmopolitismo e a universalidade de valores humanos presentes nos seus
trabalhos.
A história de todos os homens
Para o autor – e aqui mais uma vez ele segue a tradição
estabelecida na Universidade de Berlim pelo seminário de História dirigido por
Ranke – a história é sempre uma história universal, só tem sentido no seu
movimento conjunto e todas as épocas são caracterizadas por traços comuns,
comparáveis e dotados de um “sentido”. Defini-los, analisá-los e explicá-los
seria, exatamente, a tarefa do historiador.
Nesta direção Hobsbawm rompe, em função da sua visão
progressista (e naquele momento ainda otimista), com duas tradições dos seus
mestres na Universidade de Berlin. Recusa, de um lado, o historismo, o fato
único, incomparável e sem paralelo, o que impossibilitaria, desta forma, a
construção de “princípios” comuns a todos os povos e sociedades e, logo,
qualquer abordagem comparativa da história dos homens. Por outro lado, recusa
também a história imóvel de Ranke, a ideia-chave do conservadorismo romântico
alemão de que “todas as eras são imediatas a Deus”.
Ora, para Hobsbawm, marxista com profundo conhecimento de
Marx, a história, verdadeiramente, se move. Sua obra é a busca da compreensão
destes movimentos, definidos como uma sucessão de “Eras” marcadas pela ascensão
do capitalismo e o papel revolucionário, depois conservador e até reacionário
das suas burguesias. Na verdade, buscando romper com o automatismo do marxismo
vulgar – a famosa sucessão de “modos de produção” buscados na “Crítica da
Economia Política”, de Karl Marx, de 1859, como vulgata – Hobsbawm propõe
“eras” que se sucedem a partir de uma dinâmica histórica centrada no conflito –
a emergência da luta de classes dirigida pela burguesia – e do progresso
material. O conjunto da obra de Hobsbawm, inscrito na tradição do iluminismo,
do liberalismo e do marxismo do século XIX e de boa parte do século XX – é o
que chamamos uma“Stufentheorie”, uma teoria de “degraus” ou estágios.
Uma história geral do século XX
O primeiro destes “estágios” – as “eras” - descrito em “A
Era das Revoluções” é o largo período das revoluções do século XVIII, já
analisado por Godechot&Palmer como as “revoluções atlânticas”. Neste caso,
Hobsbawm despreza, como fator explicativo e elo de unicidade, o “espaço-tempo
Atlântico” – um conceito muito caro da historiografia francesa-, e estabelece
nos conflitos e lutas sociais do período, em particular no impacto da
emergência das burguesias, o elemento unificante de toda esta “era das
revoluções”. Assim, as “revoluções atlânticas”, nomeadas em função do
“espaço-tempo” por uma ampla tradição de historiadores – Godechot, Palmer,
Mauro, Godinho, etc... – para o marxista Hobsbawm são nomeadas conforme seu
conteúdo social e de classe: são as “Revoluções Burguesas”.
Há aqui, entre a tradição da historiografia francesa com o
conceito de “revoluções atlânticas” e a emergência, com Hobsbawm, do conceito
de “revoluções burguesas” mais consenso do que discordâncias. Em ambos os casos
o “espaço-tempo” é o mesmo, somente diferindo a determinação da nomenclatura
que recobre o fenômeno, em verdade, a ênfase, em uns autores, na luta de
classes e, em outros, no papel das condições da vida material (para retomar uma
expressão de Fernand Braudel). Para os franceses, buscando na geografia e no
tempo longo os elementos renovadores da história (é o caso do “espaço
Mediterrâneo” em Fernand Braudel e do “espaço Atlântico” em Mauro, Chaunu e
Godinho) a geografia e suas transformações – pensadas como dinâmica de longo
prazo das forças produtivas - determinam e conformam o fenômeno das revoluções
do século XVIII. As rotas comerciais, as cidades portuárias, o aperfeiçoamento
das técnicas náuticas e das ferramentas financeiras e a expansão de amplas
comunidades de comerciantes-empresários em ambas as margens do Atlântico e dos
seus mares “interiores” (Mediterrâneo, Mar do Norte, Mar Báltico e os
“mediterrâneos atlânticos” como o Caribe e seu comércio triangular e a vertente
brasileira e seu comércio triangular no Atlântico sul) são os grandes atores da
História entre os séculos XVII e XIX.
Para Hobsbawm, e vários dos seus companheiros, o fulcro da
explicação deve residir no seu sentido social: é o seu conteúdo de classes, a
ascensão da burguesia ao poder, que determina o caráter das revoluções e que
molda esta “era” da História.
A presença na historiografia brasileira
Ambas as tradições são, contudo, próximas: Godechot, Mauro e
Godinho – para homens vindos da “esquerda”, resistentes dos fascismos e
leitores e parceiros de colegas marxistas, como Ernest Labrousse e Pierre Vilar
- o diálogo é contínuo e resulta em vários pontos de concordância e de síntese
comum. Assim, as temáticas sobre a Revolução dos Preços, a Revolução Comercial,
a crise do século XVII, o Mercantilismo, o papel da escravidão e do tráfico
negreiro na ascensão do capitalismo e o chamado “sentido capitalista da
colonização moderna” – adotado entre nós por Caio Prado Júnior e desenvolvido
por Fernando Novais na USP – são plenamente aceitos. Para outros, como Pierre
Chaunu, haverá mais resistência.
Contudo, a centralidade da luta de classes, quase abandonada
na obra do “marxista” Labrousse em favor de uma história estrutural, onde a
dinâmica está mais nas forças produtivas numa longa duração, não será aceita
por todos com o mesmo entusiasmo.
Na verdade o conjunto da obra de Hobsbawm sobre o tema
permite a clara percepção daquilo que o historiador inglês denominou de “dual
revolution”, dois processos equivalentes e, ao mesmo tempo, de caráter próprio:
de um lado a Revolução Industrial inglesa – numa visão que rejeita a história
historicizante tradicional centrada na “história das técnicas” e das transformações
técnicas e organizacionais da fábrica - impondo um novo ordenamento social e a
formação de uma nova classe dirigente; por outro lado (do Canal da Mancha), a
Revolução Francesa, nitidamente “política” e que antecede a “libertação” do
conjunto da sociedade dos entraves do Antigo Regime e acelera e generalização
das relações sociais modernas, de tipo capitalista.
Estas duas modelagens das revoluções do século XVIII,
seriam, em sua natureza, “burguesas”, mesmo quando no bojo das lutas
revolucionárias grupos populares emergem em força, como “diggers” , “nivellers”
, na Inglaterra, ou “sans-culottes” e “bras nus” na França. Por essa razão, as
grandes explosões dos grupos sociais subalternos no interior das Revoluções
“Burguesas” são denominados de movimentos “populares” – denominação genérica,
sem claro conteúdo de classes ou, ao menos, de classe operária. Mesmo os
historiadores que valorizaram, com paixão, os grupos mais pobres e sua
expressão política durante as Revoluções Burguesas, como Albert Soboul, Christopher
Hill (mas, não a obra “gauchista” de Daniel Guérin), recusam ver tais
movimentos como uma expressão proletária.
As revoluções proletárias ainda deveriam esperar sua própria
“época”, A Era dos Extremos.
Uma história das classes populares
Mesmo entre os colegas marxistas de Hobsbawm o debate sobre
tais explicações será intenso, em espacial sobre o papel do desenvolvimento das
forças produtivas e a luta de classes enquanto condução do processo
revolucionário. Alguns historiadores marxistas, como o grupo da “New Left
Review” irão retornar ao papel dominante do comércio e das rotas do Atlântico
no processo de desintegração do Antigo Regime e na ascensão do Capitalismo.
Hobsbawm forma, desde os anos de 1930, o “Communist Party
Historian Group”, quando fugindo da ascensão do nazismo na Alemanha, troca
Berlim por Cambridge na Inglaterra. Aí se reunirá com outros historiadores
marxistas ingleses, como Christopher Hill, Rodney Hilton e Edward P. Thompson.
Tal grupo será o responsável por uma derivação cada vez mais “social” do campo
da História (inclusive da história das revoluções), em recusa a derivação cada
vez quantitativa da historiografia francesa.
Agora, com rumo próprio, esta nova, e radical, corrente
historiográfica inglesa voltar-se-ia para a formação, comportamento e a
mentalidade dos grupos revolucionários, entendendo classes sociais como uma
relação forjada nas lutas sociais. Tocados pelo debate teórico marxista sobre
as contingências da revolução – os fatores objetivos e subjetivos –, os historiadores
ingleses descreem de qualquer automatismo econômico, buscando no interior dos
grupos e classes sociais as condições de emergência de uma identidade autônoma
e revolucionária. Christopher Hill (1912-2003), erudito e fiel às questões das
lutas de classe na História, voltar-se-ia para o complexo mundo dos grupos
sociais agrários – pequenos proprietários, arrendatários, trabalhadores sem
terra e assalariados agrícolas durante a Revolução Puritana de 1640 e 1660, os
chamados “diggers” e os “levellers” – os grupos radicais de sem-terra e de
trabalhadores rurais como atores do processo revolucionário. Estes serão atores
centrais da História, mesmo que não dirigentes do processo.
Vencidos em seus pendores igualitários – “um socialismo fora
do tempo”, ou um “mundo de ponta-cabeça”-, tais grupos populares anunciavam, em
sua agenda radical, as lutas sociais futuras. Talvez tenha sido Hill o
historiador inglês que mais se aproximou das análises marxistas francesas dos
grupos subalternos – como em Albert Soboul -, centrando sua pesquisa nos grupos
como os “diggers” e “levellers” e na composição social do “New Model Army” de
Crommwell.
Revolução e História
A irrupção destes grupos sociais “populares” na cena
política, de forma aberta e muitas vezes apoderando-se da direção dos eventos,
só foi possível em virtude da quebra da hegemonia aristocrática durante o
choque entre a burguesia em ascensão e o “Antigo Regime”, representados pela
Coroa, a Câmara Alta e a Igreja. Hobsbawm será o primeiro historiador a dedicar-se
a tais grupos, em obras sobre o “bandidos”, compreendidos como um fenômeno
social de recusa em face da ordem.
Neste sentido os trabalhos de Christopher Hill, para o mundo
rural inglês, aproximam-se das análises de Georges Lefebvre sobre as
“jacqueries”(revoltas) francesas e sobre o “Grande Medo” que anunciam a
Revolução de 1798. São lutas populares, radicais, de caráter agrário, que
emergem pelas fraturas do Antigo Regime e como coadjuvantes, malgrado sua
extrema visibilidade, no processo dirigido e apropriado pelas novas classes
burguesas na liquidação do Antigo Regime.
Todos estes casos casos – Lefebvre, Hobsbawm, Hill e Soboul
e de forma polêmica também Daniel Guérin – podemos constatar a nítida presença
dos escritos de Karl Marx sobre as lutas sociais na França e suas análises da
Revolução de 1848 e da Comuna de Paris de 1871 nas hipóteses em debate.
Coube, por fim, ao próprio Labrousse a proposta de
periodização da Grande Revolução de 1789 que conceberia uma dinâmica própria
das revoluções burguesas, com suas fases de radicalização e de estabilização
decorrentes do movimento popular no bojo dos processos revolucionários. Na
grande coleção – a tão buscada “síntese” que a historiografia francesa ergueu
como meta – dirigida por Maurice Crouzet, “Histoire Générale des Civilizations”
o volume sobre o século XVIII (“Le siècle XVIIIe”, com o significativo
subtítulo “A sociedade do século XVIII perante a Revolução”) preparado por
Labrousse ( com Roland Mousnier ), o autor propõe três grandes fases das revoluções:
uma “Era das Constituições”, de 1789 até 1791, quando as propostas moderadas da
burguesia são dominantes. Em seguida uma “Era das Antecipações”, de 1792 e
1795, quando as forças populares assumem a direção do processo revolucionário e
imprimem a este um caráter radical (seria então a “revolução desnecessária”, de
David Hume, ou a “derrapagem totalitária” de François Furet ou, se quisermos, a
“antecipação” da Revolução de Outubro de 1917, conforme Karl Marx, onde
Labrousse se inspira).
Dá-se, então, forte radicalização das transformações sociais
e econômicas, chegando a alguns momentos a prenunciar as revoluções proletárias
– incluindo aí a modelagem de formas sociais e políticas que inspirarão homens
como Proudhon, Bakunin ou Marx – como a Comuna de Paris de 1793, no bojo da
Revolução de 1789. Por fim, encerrando o processo revolucionário, com a
retomada da direção política do Estado por parte das classes burguesas – o
chamado “Termidor” -, teríamos uma “Era das Consolidações”, de 1796 até 1815
(incluindo, portanto, todo o Período Napoleônico e suas brutais consequências
sobre o mundo atlântico, com suas guerras e bloqueios, culminando nas
independências latino-americanas). Aqui teremos a modelagem das revoluções dos
séculos XVII e XVIII e, diretamente, as pré-configurações, nas obras de Bakunin
e Marx, das revoluções do século XX.
De qualquer forma, fica claro, no conjunto da obra destes
historiadores, que a proposição de Hobsbawm sobre um amplo fenômeno
revolucionário que se estenderia desde finais do século XVII até meados do
século XIX, em ambas as margens do Oceano Atlântico, é aceita como
configuradora de uma época fundadora do mundo atual: a Era das Revoluções.
Nenhum comentário:
Postar um comentário