Sob o meu olhar

Aqui neste blog, vocês poderão ver, ler e comentar a respeito do que escreverei. Por meio deste meu olhar sincero, tentarei colocar artigos e dar minha opinião sobre questões atuais como politica, problemas sociais, educação, meio ambiente, temas que tem agitado o mundo como um todo. Também escreverei poesias e colocarei poemas de grande poetas que me afloram a sensibilidade, colocarei citações e frases pequenas para momentos de reflexão.
É desta forma que vou expor a vocês o meu olhar voltado para o mundo.

10/10/2011

Crônica de uma pescadora (Marco Albertim)

Portal Vermelho

Um sol cinzento fundiu-se ao rosto de Eliude. Ela saíra de manhã, logo cedo. Com as pernas cobertas de lama já ressequida, também no rosto escuro tinha traços da mesma cor. 
 
Acostumara-se à vegetação do manguezal, no esbarro em pontas de galhos das oiticicas; dentro e nas margens do mangue. Tinha fome, mas nenhuma pressa de comer. A comida pouca e repetida tirara-lhe o apetite voraz. Conservou no corpo o vestido cinza, depois de lavar os pés e as pernas, os braços e o rosto, na torneira na frente da casa, ao lado da única porta de acesso.
No jirau, pôs meia dúzia de camurins, dez caranguejos e um punhado de camarões; todos escuros, da mesma cor do massapê lamacento de onde foram tirados. O filho mais velho, com 18 anos, rosto amarelo e imberbe, absorvera da mãe a espreita paciente de ver a panela dar conta de um pirão fornido com fiapos da carne do peixe. Também aprendera a pescar, mas a irmã com 14 anos, gira, não saía de casa, sentada numa cadeira de balanço, muda, distraindo-se com os olhos no voo curto das moscas. Ele a tuteava sem cuidados, posto que ela apenas movia os olhos sob os cabelos não rendidos ao cordão de elástico na nuca.
A hora, entrevista no chão arenoso sob o sol, anunciou a vinda da freguesia de costume. Lúcia pediu a cachaça a Eliude; única freguesa da birosca, franzina, sem os dentes da frente, usando um short curto, escuro, sobre coxas tão sumidas quanto as pernas; a blusa, um cetim sem lustro, exposto diariamente na beira-mar. Seguiu-a o marido, um negro magro, fanho, sócio da mulher nos goles da seca bebida; usando só uma bermuda de muitos dias sem espremedura na água. Mais alto, mas ao curvar-se para falar com ela, uniam-se na fortuna. Atrás, dois outros que, por não terem mulher, rendiam-se a uma conversa tão miúda quanto suas vidas. Não tinham casa, viviam de favores, dormindo em espumas sob um cajueiro na frente - inda que distante do muro - de uma casa de muro alto. O dono consentira a presença deles, desde que não se aproximassem do muro, sem se referir ao bodum dos corpos, das roupas sujas.
Os quatro se puseram em torno do jirau, apreciando os cortes de Eliude nos camurins de escama prateada. Ela trouxera a garrafa, pusera-a ali mesmo, ao lado dos peixes estripados.
- Não gosto de camurim porque a espinha dele é dura feito osso de boi. – O comentário de Lúcia, inda que não enxertando mais fosfato na espinha do peixe, serviu para, mesmo sendo pobre, não se entregar à miséria.
Eliude, familiar à confraria, olhou-a por cima dos olhos, distinguindo no bacorejo uma ronda a sua panela de barro. Logo, antes que os calculados goles dessem conta da cachaça, a panela sopraria uma fumaça quente, à cata de pulmões e estômagos já avisados. Sentia, ela, o bodum da pele seca do pescoço de cada um, dos pés descalços e por certo com pulgas sob as unhas dos dedos, mas diluía-o no cheiro das vísceras dos peixes. Depois, os quatro gastavam o dinheiro obtido na pedincha, na sua bodega de prateleira vazia.
Eliude perdera o marido, e logo se acostumara à viuvez dos pobres, sem lamúrias nem doces lembranças. Os filhos também, no sossego sem a mãe ter que pagar aluguel na casa de dois vãos, construída pelo pai, junto a um muro de um casarão fechado, com jeito de abandono. No fim do mês, contas de luz e de água. Roupas, de vez em quando, porquanto o trabalho não lhes exigia tanta força.

Esfregou sal e vinagre nos peixes, juntou-os a cebolas, coentros e batatas.

- Acende o fogo para esquentar a panela – ordenou ao filho.
Quando metade do conteúdo da cachaça fora bebida, a pressão do fogo fez a tampa da panela subir, batendo nas beiras. O cozido soprou, misturando-se ao cheiro de peixe cru no jirau, subtraindo o frescor das vísceras. Com a farinha mexida no molho, o pirão encorpou.
Ela serviu os filhos ali mesmo, entre a parede e o jirau. Os dois sentados, soprando a quentura do pirão. Depois se serviu. Não sentiu remorsos por não oferecer aos fregueses. O costume de separar os hábitos da família da curiosidade de estranhos, legitimara a indiferença com que, ela também, soprasse o peixe fumegante.

Depois de lavar os pratos e talheres, trouxe a panela para fora. Segurando o cabo da colher-de-pau, disse:

- Tem uma sobra, Lúcia... Quer?

Nenhum comentário:

Postar um comentário