A reflexão de Guevara sobre o socialismo não se limita
unicamente a Cuba ou América Latina: ela é universal, mundial,
internacionalista. Para o Che o verdadeiro socialista é aquele que considera
sempre os grandes problemas da humanidade como seus problemas, que não se sente
alheio a eles, muito pelo contrário.
Apropriar-nos de forma criativa da herança guevarista,
resgatando a atualidade que esta conserva frente às grandes mudanças globais e
as metamorfoses sociais, políticas e culturais que marcaram a passagem do
século XX ao XXI, é um desafio bastante estimulante. Nas palavras do próprio
Che, “se novos fatos determinam novos conceitos, não se tirará nunca sua parte
de verdade daqueles que tenham passado.”
Muitos não percebem a atualidade do pensamento guevarista.
Porém, quando nos debruçamos sobre ele, descobrimos que muitas das mudanças
ocorridas nas últimas décadas, encontram respostas no legado do Che, tanto
programáticas quanto estratégicas. A “filosofia da revolução” do Che é, nos dias
de hoje, absolutamente contemporânea, tão vívida como a permanência icônica e
universal de sua imagem.
“A real capacidade de um revolucionário se mede por saber
encontrar táticas revolucionárias adequadas em cada mudança de situação, em ter
presente todas as táticas e explorá-las ao máximo..”.
O intelectual cubano Luiz Salazar propõe uma tese muito
interessante. Diz ele que voltar à obra do Che nos permite ver no significado
de suas utopias as “verdades do futuro” (Vitor Hugo). Defende que podemos
encontrar no acervo político do Che, novas “soluções revolucionárias”.
O socialismo para nós continua sendo pré-condição para que a
humanidade possa constituir uma nova civilização, alternativa a barbárie
moderna. E o Che ensinava: “Para construir o comunismo simultaneamente com a
base material há que construir o homem novo.” Não devemos esquecer, também, que
para o Che, “o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução”, lutar por
isso persistentemente. Para o Che, a construção do socialismo exige uma radical
revolução democrática, participativa, além de uma grande revolução cultural.
A práxis revolucionária guevarista buscou sempre recuperar a
essência subversiva dos clássicos do marxismo. Por exemplo, o maior marxista
latino-americano da primeira metade do século XX, o peruano José Carlos
Mariátegui, escrevia em 1928: “Contra uma América do Norte capitalista,
plutocrática, imperialista, só é possível opor de maneira eficaz uma América,
latina ou ibérica, socialista”. Quatro décadas mais tarde, Che Guevara retoma
esta bandeira socialista e antiimperialista, concluindo sua famosa “Mensagem a
Tricontinental” afirmando: “ou revolução socialista ou caricatura de
revolução”!
Mas qual socialismo o Che defendia? Cada vez mais crítico
nos seus últimos anos em relação às experiências socialistas “reais”, européia
e chinesa, Guevara buscava um novo caminho para Cuba e para nossa América
Latina. Para enfrentar esse desafio ele também coincidia com as idéias de
Mariátegui, que havia declarado: “Não queremos, certamente, que o socialismo
seja nas Américas calco e cópia. Deve ser criação heróica. Temos que dar vida,
com nossa própria realidade, com nossa própria linguagem, ao socialismo
indo-americano.”
Boa parte da reflexão do Che e de sua prática política,
sobretudo nos anos 60, tinha como meta sair do impasse que a caricatura de
socialismo burocrático do modelo soviético impunha aos povos na América Latina
e no Terceiro Mundo.
Segundo Michael Lowy, “o motor essencial desta busca de um
novo caminho – mais além de questões econômicas específicas – é a convicção de
que o socialismo não tem sentido – e não pode triunfar – se não representa um
projeto de civilização, uma ética social, um modelo de sociedade totalmente
antagônico aos valores do individualismo mesquinho, do egoísmo feroz, da
competição, da guerra de todos contra todos da civilização capitalista”.
Como lembra Lowy, o Che tinha perfeitamente claro que a
construção do socialismo é inseparável de certos valores éticos. Na famosa
entrevista de Guevara a um jornalista francês em julho de 1963, ele insistia:
“o socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra
a miséria, mas ao mesmo tempo contra a alienação. (...) Se o comunismo passa
por cima dos fatos de consciência, pode ser um modo de distribuição, mas não
será mais uma moral revolucionária”. O Che sabia que se o socialismo tentasse
competir com o capitalismo no terreno do adversário, o terreno do produtivismo
e do consumismo, utilizando suas próprias armas – o mercado e a concorrência –
estava condenado ao fracasso.
O socialismo para o Che era o projeto histórico de uma nova
sociedade, baseada em valores de igualdade, solidariedade, livre discussão e
ampla participação popular. Lowy salienta que tanto suas críticas crescentes ao
modelo soviético quanto sua prática como dirigente político e sua reflexão
teórica sobre a experiência cubana são inspirados por esta utopia
revolucionária. Em seus escritos econômicos a questão da planificação
socialista ocupa um lugar central, e nos seus últimos anos a concepção de
democracia socialista na planificação começa a aparecer como essencial.
Quando critica o Manual de Economia Política da Academia de
Ciências da URSS, Che Guevara avança um princípio democrático fundamental,
capaz de colocar de cabelos em pé os burocratas stalinistas (e de outros tipos
também): numa verdadeira planificação socialista é o próprio povo, os
trabalhadores, as massas que devem tomar as grandes decisões econômicas.
Contra a monopolização das decisões por tecnocratas ou
burocratas “comunistas”, o Che insistia na necessidade de uma verdadeira
participação popular: os grandes problemas sociais e econômicos de uma
sociedade são políticos e devem ser objeto de debate e decisão democrática pela
maioria. Fica claro que a reflexão de Guevara sobre o socialismo não se limita
unicamente a Cuba ou América Latina: ela é universal, mundial,
internacionalista. Para o Che o verdadeiro socialista é aquele que considera
sempre os grandes problemas da humanidade como seus problemas, que não se sente
alheio a eles, muito pelo contrário.
Numa bela síntese apresentada por Michael Lowy no Fórum
Social Mundial de Porto Alegre encontramos o “espírito” da filosofia da
revolução guevarista : “O internacionalismo para Guevara – ao mesmo tempo modo
de vida, fé profana, imperativo categórico e pátria espiritual – era
inseparável da idéia mesmo de socialismo, enquanto humanismo revolucionário,
enquanto emancipação dos explorados e oprimidos do mundo inteiro, numa luta sem
tréguas nem fronteiras com o imperialismo e a ditadura do capital.”
E segundo Lowy, os herdeiros do Che, a esquerda marxista e revolucionária,
nas últimas décadas, “aprendemos a enriquecer nossa idéia do socialismo com a
contribuição do movimento das mulheres, dos movimentos ecológicos, das lutas de
negros e indígenas contra a discriminação. Assim é o processo de construção do
projeto socialista: não um edifício pronto e acabado, mas um imenso canteiro de
obras, onde se trabalha para o futuro, sem esquecer as lições do passado.”
Ao fim e ao cabo, como disse o velho Marx, o mais importante
é a luta.
Afinal, como gostavam de lembrar, realisticamente, tanto
Lenin como Walter Benjamin: o capitalismo não vai morrer de morte natural.
Nenhum comentário:
Postar um comentário