Sob o meu olhar

Aqui neste blog, vocês poderão ver, ler e comentar a respeito do que escreverei. Por meio deste meu olhar sincero, tentarei colocar artigos e dar minha opinião sobre questões atuais como politica, problemas sociais, educação, meio ambiente, temas que tem agitado o mundo como um todo. Também escreverei poesias e colocarei poemas de grande poetas que me afloram a sensibilidade, colocarei citações e frases pequenas para momentos de reflexão.
É desta forma que vou expor a vocês o meu olhar voltado para o mundo.

15/07/2012

A Repartição (Camila Capps)


Aquele poderia ser mais um dia típico na repartição, salvo pelo alvoroço de pernas, pés e papéis que de um lado a outro iam desviando-se, por vezes, chocavam-se em um resmungo vago que logo tornava a se alinhar.
Portas estreitas riscadas por pequenas placas que sinalizavam o setor ao qual davam acesso, surgiam aglomeradas em um longo e escuro corredor. A tonalidade verde-musgo da parede, em alguns trechos, era vencida pelo bolor alimentado por umidade excessiva. De fato, todos os funcionários se incomodavam com o estado do lugar, mas como o mesmo não pertencia a sua alçada, daquela forma ele permaneceria.
Um som ritmado surgiu no início do corredor, era forte e cadenciado. Despertou a atenção de todos e logo se configurou em passos decididos, sorrateiramente acompanhados por mais dois pares reticentes.
As portas se abriam lentamente conforme o trio ia passando. Sussurros, olhares e gestos inundavam o pequeno espaço entre as paredes que configurava aquele local.  Diziam entre dentes:
- O que será que ela vai alegar?
- Vocês acham mesmo que ela errou? Logo ela que há tanto tempo trabalha aqui?
- Disso eu não sei. Só sei que o erro dela causou um grande problema em meu setor.
Diante da última porta pararam. Ela permanecia austera, coluna reta e em uma das mãos trazia seu objeto de trabalho. Um dos acompanhantes tentou em vão retirá-lo. Apenas um olhar bastou para que suas mãos disfarçassem a pífia investida. O outro, ignorando a ação do companheiro, adentrou a sala pedindo para que esperassem.
Mantendo seu olhar fixo na placa da porta, ela apenas respondeu ao acompanhante:
- Conheço o protocolo e, pelo que sei, isto ainda me pertence.  Segurando, com força estremada, o objeto.
A porta se abriu revelando novamente o segundo acompanhante, com a cabeça baixa sem que seus olhos pudessem fitá-la, apenas indicou o caminho a seguir:
- Ele irá recebê-la agora.
Um leve titubear fez-se presente nos movimentos daquela figura feminina, quase demonstrando fragilidade, mas logo foi contornado por nova firmeza em seus passos. Deixando para trás os que a acompanhavam até então, ultrapassou a linha da porta.
A ante-sala parecia pronta a recepcionar. Mesmo não possuindo janela ou qualquer fonte de luz natural, era extremamente clara. Não havia nenhum resquício da umidade que contaminava o lado de fora. Um tom creme se apresentava desde os rodapés até a metade das paredes para ser substituído repentinamente pela alvura inconfundível do branco. Alguns poucos bancos encontravam-se ao lado da entrada. Em uma mesa de canto, ao fundo da sala e próxima a porta que dava acesso ao setor principal, uma funcionária dissimulava entreter-se em uma atividade enfadonha, seu fingimento não era capaz de segurar o movimentar de seus olhos que, a cada segundo, percorriam vorazmente a intrigante figura.
Lentamente, a mulher percorreu todo o comprimento da ante-sala até alcançar o limite entre ela e a outra. Apenas nessa hora, sua insegurança se fez nitidamente visível. Ao entrar, a cegueira causada pelo excesso de claridade, pousou por um instante em seus olhos.
A ampla sala era inteira recoberta por um branco ainda mais alvo do que o presente na anterior. Longas prateleiras de arquivos tomavam conta das laterais do aposento. A organização soava sufocante. Uma janela cortava lado a lado a parede oposta à entrada. Não era possível ver qualquer tipo de paisagem, apenas mais claridade, mais alvura e o retornar da cegueira se instalou como um corvo a ruflar suas asas diante de seus olhos.
Seu estado torpe foi interrompido por uma voz vinda do fundo da sala. Sentado à única e imponente mesa em mogno, encontrava-se um homem de aparência gentil. Um sorriso um pouco debochado desenhava-se em seus lábios. Apontando a cadeira à frente de sua mesa disse:
Pode deixar essa…essa…digo, seu instrumento de trabalho encostado aí no canto. Creio que não será necessário seu uso agora.
Ela sentou-se à cadeira, um pouco desconfortável, procurando o melhor lugar para largar as mãos apreensivas. O sorriso na face do homem ainda se fez presente. Inclinando seu corpo um pouco à frente e apoiando os braços sobre a mesa, ele começou:
- Minha velha companheira, devo dizer que estou um pouco frustrado de ter que te encontrar justo aqui…Gosto de nossas conversas, mas elas são bem melhores fora desta repartição.
-É, também não me agrada estar aqui…
As mãos dele folheavam uma pequena pilha de papel que escondiam, ainda que em pequena parte, o lustroso brilho da mesa. Os olhos seguiam as linhas de palavras presentes nas folhas e a boca começou a balbuciar algo que tornou-se um questionamento:
- Imagino que saiba o porquê de sentar-se a essa cadeira. Confesso que quando os relatórios chegaram fiquei perplexo, não queria acreditar em algo tão sério, vindo de uma funcionária com a sua reputação.
- Se me permite, gostaria de saber qual é a minha reputação?
- Ora, vamos, não estou te reconhecendo. Sabe muito bem que todos aqui admiramos a seriedade com que executa seu trabalho. Até a presente data, não havia nenhum registro de atraso ou descaso de sua parte.
- Sei, pois bem, esta é a minha boa reputação, sempre acatar e cumprir ordens…
A calma e amabilidade com que ele pronunciava as palavras, por um breve instante, pareciam planejar uma fuga veloz de sua expressão. A ela, a sala agora parecia menos clara. Até mesmo a luz que antes dava a impressão de irradiar diretamente da janela ganhava uma certa opacidade. Um suspiro longo aprisionou novamente a tranqüilidade ao rosto dele. Empunhando uma das folhas voltou a falar:
Vamos aos fatos. Você trouxe onze pessoas para cá que, segundo me consta, não deveriam estar aqui. Foi algum equívoco, ordem de serviço errada ou o quê?
- Elas simplesmente queriam vir… Cruzou as pernas e com o movimento a cadeira lhe pareceu mais confortável, a confiança começou a inundar seu corpo, sentia um ímpeto de contrariá-lo. Porém, a mesma fugacidade que trouxe a emoção esvaneceu-a sob as faíscas que agora pareciam saltitar nos olhos dele.
Perfeitamente. Entenda o problema. Se é que você ainda pode entendê-lo. Como bem sabe, existem aqui três setores para receber as pessoas que chegam. O Superior, o Meio e o Inferior. Há aqueles que vão direto para o Superior, também temos aqueles que se dirigem rapidamente para o Inferior. Há ainda, os que devem aguardar segunda ordem no Meio, para só então se dirigirem a um dos outros. Mas, até onde eu sei, ainda não temos um setor intitulado “Você Não Deveria Estar Aqui”. Ao pronunciar essas palavras, suas mãos bateram com força sobre a mesa, fazendo as folhas saltarem assustadas. Inclinou-se ainda mais, quase tocando a ponta de seu nariz ao dela. Seus olhos se encontraram, um longo e sonoro suspiro o fez voltar-se reticente a seu antigo ar de calmaria.
- Permita-me explicar. Essa boa reputação que você tanto elogia só me é particular na repartição. Fora dela, ninguém reconhece meu trabalho. Cumpro apenas ordens, como você sabe, mas sou sempre culpada por elas. Ela aproximou-se da mesa e cruzou as mãos um pouco trêmulas sobre ela.
- Não estou entendendo. Seja mais clara. Não existe culpa, apenas ordens. Cumpra-as, como sempre fez. Era quase possível vislumbrar as faíscas trepidando novamente em seu olhar.
- Olhe, é realmente muito fácil dizer isso quando todo o lado positivo pende apenas para o seu. Sua reputação é boa em todos os lugares, não apenas aqui na repartição. Todos te admiram, nunca temem. Mas eu…ow…não! Sou sempre temida, odiada…Todas os dizeres pejorativos caem sobre meu nome.
- Não floreie. Vá direto ao ponto. Ele levantou da mesa dando costas a ela. Seguiu para a janela e lá ficou, como se admirasse uma paisagem inexistente aos olhos dela.
Ah, senhor Destino. Você sabe muito bem do que estou falando…Quando algo bom acontece, qual a frase que ouvimos? “Oh, como o Destino foi bom comigo”. Se não é tão positivo assim… “Foi o Destino quem quis”. No meu caso é bem diferente….O buraco é mais embaixo: a pessoa agonizando, a família rezando, mas seu apareço para dar uma ajudinha….“Oh, Morte como você não tem pena”… E os casamentos então…. “Até que a Morte os separe”. Que história é essa? Você sabe que a maioria deles nunca sequer começou… 
As palavras dela se aglomeravam em frases nervosas, quase não era possível compreendê-las. Ao final da sequência um tanto quanto escandalosa, ele já havia se sentado novamente à cadeira. O sorriso faceiro brincava novamente em seus lábios.
Então é isso? Você desorganizou a repartição inteira, apenas por ciúme? E o que essas pessoas estão fazendo aqui?
Sua frase ricocheteou pela sala até atingi-la em cheio. O branco das paredes se somava na palidez excessiva do rosto dela. Não ousava mais encará-lo. Mantinha a atenção focada no chão da sala, como se o mesmo transmitisse uma mensagem muito importante a ser decifrada.
- Eu atendi a seus pedidos…
- Como assim?
- Eram umas reclamonas, qualquer coisa besta que lhes acontecia e pronto…. “a vida não vale mais a pena…” “Oh, Morte traga-me alívio”. Não é uma questão de ciúme. Estou a tanto tempo neste trabalho que gostaria de ter iniciativa própria. Acho que poderia muito bem decidir de quem é a hora.
- E como iríamos organizar as coisas se cada um que aqui trabalha, decidisse, por si próprio, que deve tomar iniciativa? O caos estaria construído. Será que sobraria mais alguém fora desta repartição?
- Mas eu tenho mais tempo de serviço que qualquer outro aqui…
- Sim eu sei, mas você só deve executá-lo e não criá-lo. Pense na responsabilidade que anda junto com ditar as regras. Até eu já me peguei pensando que seria melhor apenas obedecê-las.
Um longo silêncio se instalou, a claridade parecia dominar toda a sala novamente e ela quase pôde sentir novamente o corvo-cegueira a bicar seus olhos. Ele tamborilava os dedos sobre a mesa, um novo brilho reluzindo a pena que sentia pela velha amiga invadiu seu olhar.
- Você entende o que esta situação lhe causará?
- Sim…Uma reticência amarga escorria por sua face. Seguiu o movimento da mão dele até o telefone e ouviu com pesar as palavras que se seguiram:
- Preciso que alguém acompanhe a senhora Morte até a saída da repartição. Avise o setor de concursos que temos uma vaga em aberto para o cargo dela.
Os mesmos acompanhantes que a haviam trazido, vieram buscá-la. O caminho até a saída parecia cada vez mais longo sob os olhares curiosos que os seguiam. Lá no fundo, a sala branca se tornava apenas uma lembrança distante e ela não pôde ver o caminhar do Destino até seu antigo instrumento de trabalho.
Recostada na parede, a foice antiga apresentava um brilho sobrenatural. Cativante, inebriante, de fato, fascinante. As mãos dele deslizaram suavemente em seu cabo. Puxou-a para si, experimentou alguns movimentos no ar. Um ar de sê, pintou-se em seu rosto, borrando-se na seqüência com a entrada de outro funcionário que viera para buscar o instrumento.

2 comentários:

  1. Olá,Carmem!
    Obrigada por publicar meu conto em seu blog!
    Para quem quiser ler outros contos é só acessar:
    apinturadaspalavras.wordpress.com

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  2. Obrigada a você Camila. Gosto muito do que você escreve. Parabéns pelo conto, simplesmente sensacional.

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