Por Dênis de Moraes - Blog da Boitempo
Numa época
de mercantilização generalizada, economias globalizadas, digitalização,
concentração monopólica da mídia, torna-se estratégico o papel dos
sistemas de comunicação na vida socioeconômica e política, não apenas
para a consolidação ou a reversão de consensos, como também para a
soberania nacional, a diversidade informativa e cultural, a integração
regional e a cooperação internacional.
A
pluralização da comunicação depende, entre outros requisitos, do
convencimento social sobre a necessidade de espaços mais livres de
informação e opinião e, principalmente, de políticas públicas que
promovam a diversificação de fontes emissoras e a multiplicação dos
pontos de vista nos meios de difusão.
A ênfase nas políticas públicas é
decisiva para a criação e a aplicação de mecanismos democráticos de
proteção às demandas da coletividade frente às ambições lucrativas do
setor privado.
Os marcos
modernos das políticas de comunicação relacionam-se aos objetivos
nacionais perseguidos pelos Estados ao longo dos séculos XIX e XX, como
respostas à inovação contínua das tecnologias. O papel do Estado foi
essencial no desenvolvimento do telégrafo, das telecomunicações, do
cinema, do rádio e da televisão. À medida que tais indústrias foram se
consolidando, a atuação estatal tornou-se determinante à configuração de
direitos, regulamentações e restrições.
Em função da
correlação de forças vigente em cada conjuntura específica, as
políticas oscilaram e oscilam entre a defesa do interesse público e as
exigências de rentabilidade do setor privado. A despeito do movimento
pendular entre os valores sociais e as pretensões mercantis,
historicamente é em nome do interesse nacional que se reconhece e se
legitima a intervenção do Estado para ordenar e harmonizar os mercados
constituídos por novos meios de comunicação e redes de distribuição de
conteúdos. Essa intervenção geralmente engloba a fixação de normas,
estratégias e práticas de organização, regulação, gestão, financiamento,
formulação de planos e condições competitivas. Trata-se de
reconhecer o Estado como instância capaz de zelar pelos direitos da
cidadania nos processos, práticas e dinâmicas comunicacionais, no cotejo
com os desígnios do mercado.
Um dos
marcos das discussões sobre políticas de comunicação foi o célebre
Relatório McBride, de 1980, redigido por uma comissão de 15 membros
presidida pelo advogado e ex-ministro das Relações Exteriores da
Irlanda, Sean MacBride, Prêmio Nobel da Paz de 1974, Prêmio Lenin da Paz
e um dos fundadores da Anistia Internacional. Dois representantes
latino-americanos a integravam: o escritor colombiano Gabriel García
Márquez e o economista e diplomata chileno Juan Somavía. O relatório,
intitulado “Um mundo e muitas vozes”, resultou de iniciativas da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), no final da década de 1960, com o propósito de construir a
chamada “Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação” (Nomic). Em
1976, o Movimento de Países Não Alinhados demonstrou a intenção de criar
uma Nova Ordem Informativa Internacional, na ocasião considerada por
estas nações algo tão importante quanto a já proposta Nova Ordem
Econômica Internacional. O movimento, apesar de não ter sido uma
iniciativa latino-americana, estava em consonância com o espírito de
mudanças que vivia a região. Um passo adiante foi a aprovação, na
Conferência Geral da Unesco, realizada em novembro de 1978, em Paris, da
“Declaração sobre os Princípios Fundamentais Relativos à Contribuição
dos Meios de Comunicação de Massa para o Fortalecimento da Paz e da
Compreensão Internacional para a Promoção dos Direitos Humanos e a Luta
contra o Racismo, o Apartheid e o Incitamento à Guerra”.
O Relatório
MacBride foi aprovado dois anos depois, por consenso, na 21ª Conferência
Geral da Unesco, em Belgrado. O texto final reconheceu a existência de
grave assimetria no fluxo mundial de informação e fez 82 recomendações,
entre as quais: promover a ideia de que a comunicação é um direito
fundamental dos cidadãos e grupos sociais; diminuir os desequilíbrios e
desigualdades no campo da informação; promover uma comunicação
democrática global que respeite as identidades culturais e os direitos
individuais dos cidadãos; desenvolver políticas de comunicação, no
âmbito dos Estados, relacionadas aos processos nacionais e regionais de
desenvolvimento. Sua publicação estimulou uma série de conferências
regionais sobre temáticas correlacionadas, inclusive na América Latina,
sob os auspícios da Unesco.
Com a
hegemonia do neoliberalismo ao longo da década de 1980, a correlação de
forças favorável aos imperativos do mercado enfraqueceu o debate sobre a
diversidade cultural e inviabilizou as mudanças sugeridas pelo
Relatório McBride. Venício de Lima assinala que o Relatório e a Unesco
“enfrentaram fortíssima oposição dos conglomerados globais de mídia e
dos países hegemônicos”, durante o apogeu da onda neoliberal. E
acrescenta: “Sob a liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, foi
lançada uma ofensiva mundial a favor do ‘livre fluxo da informação’,
bandeira com ‘poder de fogo’ equivalente ao princípio da liberdade de
imprensa. Correndo o risco de simplificação demasiada, a batalha foi
‘vencida’ quando tanto os Estados Unidos (1984) como a Inglaterra
(1985), alegando a politização do debate, se desligaram da Unesco.”
O apoio da
própria Unesco à Nomic esvaziou-se e a discussão institucionalizada do
desequilíbrio no fluxo de informações Norte-Sul se deslocou para o
âmbito do Tratado Geral sobre as Tarifas Aduaneiras e o Comércio (GATT),
mais tarde transformado na Organização Mundial do Comércio (OMC), sob
influência dos Estados Unidos e seus aliados.
Numa
perspectiva histórica, não é difícil perceber que o Relatório McBride
foi intencionalmente desprestigiado, subestimado e mesmo ignorado na
escalada conservadora que se seguiu, porque, de fato, representava – e
ainda representa, mesmo tomando-se em conta as mudanças ocorridas desde
então – um avanço indiscutível em termos de discussão e definição de
linhas norteadoras para políticas de estímulo e proteção à diversidade
informativa e cultural, em contraposição às ambições monopólicas e
mercantis.
Nos anos
1980 e 1990, as políticas neoliberais de desregulamentação,
desestatização e privatização enfraqueceram a interferência do Estado em
áreas estratégicas e na promoção de políticas sociais. O discurso
dominante passou a rotular como “intromissão indevida” do Estado a
formulação de diretrizes para a expansão das tecnologias de conexão e
transmissão (satélite, cabo, redes infoeletrônicas), sob a justificativa
de que cabia ao mercado autorregular-se. Em 1998, no meu livro O planeta mídia: tendências da comunicação na era global,
eu assinalava que, como sequela da onda privatizante que engolfara a
maioria dos países, “há claro indicativo de que a conglomeração [nos
setores de mídia e entretenimento] tende a agravar-se na América Latina,
unindo investidores internacionais a grupos multimídias regionais”.
Infelizmente, a previsão veio a confirmar-se.
Nos últimos
20 anos, as políticas públicas de comunicação foram orientadas,
essencialmente, para o que Damián Loreti e Guillermo Mastrini
classificam de “re-regulação”: a eliminação de restrições à concentração
dos meios. A revisão dos marcos legais viabilizou uma
“liberalização controlada”, com atores privados assumindo o controle de
questões-chave que envolviam o sistema comunicacional como um todo. As
políticas públicas tornaram-se escassas e insuficientes, e os controles
monopólicos e oligopólicos foram favorecidos por legislações omissas. As
conveniências mercantis acabaram preponderando na convergência digital,
viabilizada pela hibridação das infraestruturas de geração de dados,
imagens e sons. Sem contar que a distribuição simultânea e global de
programações, conteúdos e serviços faz reluzir a mais-valia com a
comercialização dos mesmos itens em diferentes plataformas e suportes.
Em vários
países, a convergência se desenrola sem marcos regulatórios adequados ou
mesmo sem regras básicas definidas, a pretexto de não estabelecer
barreiras à livre comercialização de serviços informativos e culturais
que, na lógica exclusiva dos oligopólios nacionais e transnacionais,
desestimulariam a concorrência e a competitividade no mercado global.
Em suma, o
refluxo das políticas públicas teve a ver tanto com a concentração e a
transnacionalização que se acentuaram com a “re-regulação”, quanto com o
fato de os Estados terem se apartado, deliberadamente, de suas
responsabilidades para com a modernização das infraestruturas produtivas
e a ação regulatória. Os governos “deixaram em mãos privadas – muitas
vezes transnacionais – os instrumentos-chave para informar a cidadania e
oferecer canais públicos para a sua expressão”.
Com os
indícios de crise do neoliberalismo na primeira década do século XXI,
reapareceram, no âmbito da sociedade civil, questionamentos à lógica
financeirizante dos mercados. À medida que se expandiam os movimentos de
contestação à ideologia mercantilista da globalização, reavivaram-se as
críticas ao controle da informação e da opinião pela mídia. O
ecossistema descentralizado e interativo da internet passou a ser
utilizado por grupos ativistas, coletivos e agências de notícias
independentes com o propósito de disseminar informações sobre os atos
contra a globalização capitalista, boicotados pelos meios hegemônicos. O
ativismo em rede revelou novas formas de mobilização, de engajamento e
de difusão em tempo real. A instantaneidade, a transmissão
descentralizada, a abrangência global, a rapidez e o barateamento de
custos tornaram-se vantagens ponderáveis. Os recursos da internet
contribuíram também para o surgimento de observatórios de crítica da
mídia, redes colaborativas e intercâmbios informativos sem finalidades
lucrativas.
Além de
ampliar a visibilidade das lutas contra a ditadura dos mercados, essas
iniciativas reintroduziram reivindicações por uma participação mais
ativa do Estado na reestruturação de atividades essenciais. No setor de
comunicação, as exigências centram-se na discussão e na proposição de
alternativas à concentração e à oligopolização da mídia, incluindo
formas de regulação dos fluxos globais de dados, sons e imagens. Cumpre
reconhecer que essa retomada das reivindicações pela democratização dos
sistemas de comunicação vai ao encontro de princípios defendidos pelo
Relatório MacBride e os documentos aprovados pela Unesco no limiar da
década de 1989.
Um dos
pontos recorrentes nos debates, propostas e documentos diz respeito à
reestruturação da radiodifusão, tendo como pressuposto uma distribuição
equitativa e complementar entre três as três instâncias: o Estado (para
assegurar um serviço público de qualidade), o setor privado (com fins
lucrativos e responsabilidades sociais) e o setor social (sem fins
lucrativos, independente do poder estatal e constituído por entidades e
movimentos comunitários, étnicos e de gênero, universidades, sindicatos,
associações profissionais etc.).
A
distribuição equitativa demarca os campos de atuação e a
complementaridade dos atores envolvidos, sendo decisiva para separar as
ambições comerciais dos interesses sociais. Do mesmo modo, é importante
para distinguirmos as especificidades das esferas estatal e pública (em
que atuam, autonomamente, diferentes grupos, classes e instituições
sociais) nas questões comunicacionais. Elas podem até convergir em
certas circunstâncias, mas não por atavismos ou alinhamentos
automáticos. Quando prevalecem os prismas do estatal em detrimento da
variedade do público, há o perigo de se desmobilizarem as vontades,
inibirem-se as expressões criativas e enfraquecerem- se as práticas
transformadoras dos sujeitos sociais.
Por último, a
distribuição equitativa nos acessos à informação, à cultura, ao
conhecimento e aos benefícios tecnológicos merece ser realçada porque a
radiodifusão faz parte dos bens públicos comuns e não deve ser
monopolizada por agentes econômicos privados, como se fosse sua
propriedade exclusiva.
A
expectativa de avanços nas Cúpulas Mundiais da Sociedade da Informação
de Genebra e Túnis, promovidas pelas Unesco em 2003 e 2005, acabou se
frustrando em função dos antagonismos entre valores e visões de mundo
inconciliáveis. Os países mais industrializados, os conglomerados de
mídia e as empresas de telecomunicações defenderam uma perspectiva
mercadológica para a informação, concebendo as novas tecnologias de
comunicação como elementos estruturantes do desenvolvimento econômico,
baseado no livre mercado global de bens e serviços. A representação da
sociedade civil, formada por organizações não governamentais e
movimentos sociais, reivindicou a democratização da comunicação e do
conhecimento, com distribuição equitativa das tecnologias e acesso
universal à informação, sem fins comerciais. As divergências incluíram
questões pontuais, como as disparidades digitais, a propriedade
intelectual e a governança da internet. Não havendo consenso, a
sociedade civil divulgou, em separado, a Declaração da Sociedade Civil
na Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, limitando-se a
endossar princípios gerais: “Os direitos à comunicação são
intrinsecamente vinculados à condição humana e baseados em um novo, mas
forte entendimento das implicações dos direitos humanos e do papel das
comunicações”.
Nos últimos
anos, o tema do direito à comunicação voltou à ordem do dia nos cenários
internacional e latino-americano, levando-se em conta a necessidade de
se aprofundar a democracia com a participação cidadã na tomada de
decisões. “Para isso, os diversos setores sociais precisam estar
devidamente informados e ter acesso real aos meios de comunicação para
poder expressar seus pontos de vista, questão que remete à necessidade
de potencializar a diversidade e pluralismo em tais meios”. (7)
Entretanto,
persistem distorções que impedem expressões igualitárias, acentuam o
domínio das corporações midiáticas, consagram exclusões no acesso aos
conhecimentos e às inovações, e cristalizam descompassos entre os países
que dispõem de recursos financeiros e tecnológicos para incrementar a
produção cultural e os países periféricos, pouco competitivos nos
mercados interno e externo.
Amplia-se o
entendimento de que o Estado é a instituição que pode salvaguardar a
diversidade informativa e cultural enquanto elemento decisivo à
afirmação da cidadania, em consonância com reivindicações da sociedade
civil. A Assembleia pelo Direito à Comunicação no Fórum Social Mundial
de 2011, em Dakar, divulgou a declaração “O direito de informar e ser
informado”, com propostas que envolvem ações governamentais e sociais:
defender e promover iniciativas pelo direito à comunicação e à
informação como um direito humano fundamental; lutar por um marco
regulatório e legislativo para as mídias públicas, alternativas e
comunitárias, inclusive através do acesso a frequências de radiodifusão;
promover o acesso, a acessibilidade e a apropriação das mídias e das
novas tecnologias de informação e comunicação por todos os cidadãos, sem
restrição de gênero, classe, raça ou etnia; intensificar experiências
de comunicação compartilhada; apoiar o desenvolvimento das mídias
comunitárias; combater a censura e garantir a liberdade de expressão na
internet; discutir modelos de financiamento que garantam a viabilidade, a
sustentabilidade e a independência dos veículos alternativos; colocar
as questões ligadas ao direito à comunicação no centro dos debates do
Fórum Social Mundial.
Sem ignorar
as mutações da era de convergência infotelecomunicacional, está em jogo
fazer prevalecer um conjunto de princípios que resultem,
progressivamente, em políticas públicas de valorização de identidades
culturais, de estímulo ao pluralismo e de difusão de informações
verazes, a partir do reconhecimento de suas essencialidades na vida dos
indivíduos e das comunidades.
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