Por Slavoj Žižek - Blog da Boitempo
Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni
Como Barack Obama foi reeleito? Recentemente, Jean-Claude Milner propôs a ideia de “classe estabilizante”: não a antiga classe dominante, mas sim a classe ampla formada pelas pessoas que se comprometem totalmente com a estabilidade e a continuidade da ordem social, econômica e política vigente, a classe das pessoas que, até mesmo ao exigirem uma mudança, fazem-no para impor mudanças que tornarão o sistema mais eficaz e garantirão com isso que nada mude de fato. O segredo dos resultados eleitorais nos países desenvolvidos da atualidade é: quem consegue conquistar o apoio dessa classe? Longe de ser realmente visto como um transformador radical, Obama conquistou essa classe e por isso foi reeleito. A maioria que votou nele foi desencorajada pelas mudanças radicais defendidas pelo mercado republicano e pelos fundamentalistas religiosos.
Mas, a longo prazo, isso basta? Em Notas para a definição de cultura, o célebre conservador inglês T. S. Eliot observou que há momentos em que a única escolha existente é entre a heresia e a descrença, quando a única maneira de manter viva uma religião é realizar uma cisão sectária de seu cadáver principal. Algo semelhante é necessário para romper com a crise debilitante das sociedades ocidentais – e aqui, obviamente, Obama deixa a desejar. Muitos radicais de esquerda que se decepcionaram com a gestão de Obama usaram contra ele justamente o fato de que o núcleo de sua tão anunciada “esperança” provou-se ser a esperança de que o sistema pode sobreviver com mudanças modestas e apropriadas.
Deveríamos então subestimar Obama? Será que de fato ele nada mais é que um Bush com rosto humano? Há sinais, no entanto, que apontam para além dessa visão pessimista. Por mais que a reforma da saúde proposta por Obama tenha se atolado em tantas transigências e resultado em quase nada, o debate que ela desencadeou foi da máxima importância.
Uma das grandiosas artes da política é insistir numa demanda particular que, apesar de completamente “realista”, viável e legítima, perturba o próprio cerne da ideologia hegemônica. Muitas vezes, uma demanda “moderada” e precisa, estrategicamente bem colocada, pode desencadear uma transformação global. A reforma da saúde proposta por Obama foi um passo experimental nessa direção – como explicar de outra maneira o pânico e a fúria que ela despertou no partido republicano? Obviamente, a reforma tocou em um nervo bem central do edifício ideológico dos Estados Unidos – mas que nervo? Seu nome é simplesmente: “liberdade de escolha”.
Por mais ridículas que sejam as infames diatribes comunistas contra a liberdade “formal” burguesa, elas lançam uma nova luz sobre a reforma da saúde de Obama. É verdade que a reforma efetivamente retira de grande parte da população a “liberdade” dúbia de se preocupar com quem irá cobrir suas doenças, de encontrar um caminho na intrincada rede de decisões financeiras e de outros tipos: ao serem capazes de dar como certa a assistência básica à saúde, de contar com ela como se conta com o fornecimento de água ou eletricidade sem se preocupar em escolher uma empresa de distribuição, as pessoas simplesmente terão mais tempo e energia para dedicar a vida a outras coisas. A lição que devemos tirar disso, portanto, é que a liberdade de escolha só funciona realmente se uma rede complexa de condições legais, educacionais, éticas, econômicas e outras existir como pano de fundo consistente e invisível do exercício de nossa liberdade. É por isso que, como antídoto para a ideologia da escolha, países como a Noruega deveriam ser considerados como modelos: embora os principais agentes respeitem um acordo social básico, embora projetos sociais amplos sejam realizados num espírito de solidariedade, o dinamismo e a produtividade social estão em níveis extraordinários, o que nega categoricamente a voz corrente de que uma sociedade assim deveria estar estagnanda.
Na Europa, o andar térreo dos prédios é contado como zero, de modo que o andar de cima seja o “primeiro”, enquanto nos Estados Unidos o “primeiro andar” fica no nível da rua. Essa diferença trivial indica uma profunda lacuna ideológica: os europeus sabem que, antes de começar a contar – antes de tomar decisões, de escolher –, tem de haver um solo de tradição, um nível zero dado sempre-já e que, como tal, não pode ser contado, enquanto os Estados Unidos, uma terra sem tradição histórica própria, carecem desse solo e supõe que se pode começar diretamente com a liberdade autolegislada – o passado é apagado (transposto para a Europa). Os Estados Unidos precisam aprender a levar em consideração a base da “liberdade de escolha”.
Obama é frequentemente acusado de dividir o povo norte-americano em vez de unir as pessoas para encontrar soluções bipartidárias amplas – mas e se isso for exatamente o que ele tem de bom? Em situações de crise profunda, é necessária uma divisão autêntica urgente – uma divisão entre os que querem se arrastar nos antigos parâmetros e os que têm consciência da mudança necessária. Tal divisão, e não as transigências oportunistas, é o único caminho para a verdadeira unidade. Quando perguntaram a Margaret Thatcher sobre seu maior êxito, ela respondeu sem pestanejar: “O New Labour”. E ela estava certa: seu triunfo foi o fato de suas políticas econômicas básicas terem sido adotadas até mesmo por seus inimigos políticos – o verdadeiro triunfo não é a vitória sobre o inimigo, ele ocorre quando o próprio inimigo começa a usar a sua linguagem, de modo que suas ideias formem a base de todo o campo. Hoje, no momento em que a hegemonia neoliberal está claramente se desintegrando, a única solução é repetir, na direção oposta, o gesto de Thatcher.
O “Yurodivy” é a versão ortodoxa russa dos Loucos por Cristo que fingem insanidade para transmitir uma mensagem tão perigosa para os detentores do poder que, se dada diretamente, provocaria uma reação brutal. Os tuítes de Donald Trump depois das eleições não se assemelham precisamente aos disparates dos Loucos por Cristo? “Vamos lutar desesperadamente e acabar com essa tremenda e lamentável injustiça! Essa eleição é uma fraude, uma farsa. Não somos uma democracia! Não podemos deixar isso acontecer. Devemos seguir em passeata até Washington e acabar com essa farsa. Precisamos de uma revolução nesse país!”. Embora Trump não seja realmente um radical de esquerda, é fácil perceber nos seus tuítes a dúvida sobre a “democracia formal burguesa” geralmente atribuída à Esquerda radical: liberdades superficiais mascaram a força das elites que impõem sua vontade pelo controle e pela manipulação da mídia. E há uma ponta de verdade nessa dúvida – nossa democracia precisa efetivamente ser reinventada. Cada abertura deveria ser explorada para nos aproximar desse objetivo, até mesmo as fendas minúsculas pelas quais irradiou alguma luz no primeiro mandato de Obama. Nossa tarefa durante o segundo mandato é exercer uma pressão constante para abrir essas fendas.
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