Até a segunda semana de dezembro entra em vigor no Uruguai a lei que regulamenta a prática do aborto.
Depois de dez anos na pauta política do país, a nova legislação prevê
que uruguaias e estrangeiras que residam no país há mais de um ano
poderão realizar de forma legal a interrupção de gestações que, por
qualquer motivo, não queiram dar continuidade. Após o texto ser
sancionado pelo presidente José “Pepe” Mujica, os responsáveis pela
saúde no país acertam os últimos detalhes em relação à distribuição do
medicamento que será usado para que as interrupções sejam feitas de
maneira segura. A previsão inicial era de que seria possível colocar em
andamento o novo marco legal em 22 de novembro, um mês após a sanção,
mas a expectativa agora é de que no começo do próximo mês a questão
esteja definida. O medicamento e o atendimento pré e pós aborto será oferecido gratuitamente em todas as unidades ligadas ao sistema de saúde pública uruguaio.
O vizinho do Brasil chamou atenção de vários países do mundo como a
segunda nação latino-americana a permitir oficialmente o procedimento,
com ampla adesão social e apoio de sindicatos, estudantes, mulheres e
outros grupos militantes. Internamente, no entanto, o debate ainda está
longe de terminar. Enquanto algumas correntes dão sinais de que vão
lutar para derrubar a lei, movimentos sociais de esquerda também fazem
críticas ao texto, que não consideram “tão progressista assim”.
- O que a lei diz é que se mantém o delito do aborto – afirma a
diretora da Mulheres e Saúde do Uruguai (MYSU), Lilián Bracinskas. “A
pena só não se aplica à mulher que cumpre com todos os requisitos para
solicitar o serviço. Então o que a lei faz é habilitar serviços de
aborto não puníveis. Se você não cumpre todos os requisitos, ainda está
cometendo um crime”, explica. A MYSU é uma das organizações não
governamentais mais atuantes no debate sobre o assunto no país.
Em 2008, o então presidente Tabaré Vázquez vetou todos os artigos da
Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva que tratavam sobre interrupção de
gravidez. A chegada à presidência de Mujica, que não compartilha dos
mesmos valores cristãos de Vázquez, e o compromisso explicitado de não
vetar nenhuma lei aprovada no Congresso forneceram a conjuntura perfeita
para que a lei fosse aprovada.
Quando o assunto voltou a ser discutido no Legislativo, o projeto de
lei do aborto foi considerado um assunto de consciência, e não um tema
político. Dessa forma, cada parlamentar pôde votar livremente, sem ter
de seguir a orientação do partido. Dois dos deputados da Frente Ampla,
principal partido de esquerda do Uruguai, se posicionaram contra o
texto original do projeto e foi preciso negociar com os partidos
conservadores uma nova redação.
- A negociação girou em torno de deixar de reconhecer o direito da
mulher em detrimento disso que temos agora, a tutela para tomar a
decisão mais responsável – aponta Lilián. Para que possa fazer
interrupções de gestações até a 12ª semana, a mulher precisa se
consultar com uma equipe formada por um ginecologista, um psicólogo ou
um psiquiatra e um assistente social em uma unidade de atendimento
integrada ao sistema de saúde uruguaio, seja público ou privado. Essa
equipe não pode proibir a realização do aborto, mas está incumbida de
desencorajar a paciente. Depois da consulta, ela precisa refletir
durante cinco dias sobre a realização do aborto e reafirmar seu
interesse.
Profissionais e estabelecimentos de saúde já existentes podem
declarar estarem impedidos por suas consciências de realizarem esses
procedimentos. As mulheres também podem pedir para trocar de local de
atendimento caso ela não confie no que está vinculada.
Ainda assim, a burocracia criada pela lei para que as mulheres possam
abortar é criticada. “A relação entre o usuário e um profissional de
saúde é uma relação de poder desigual. É bastante difícil argumentar
frente a profissionais de saúde. E se você tem dúvidas, porque vem de um
contexto pobre, com forte influência religiosa e tem de enfrentar uma
equipe de profissionais te dizendo que o aborto não é uma boa ideia, é
muito provável que consigam te desestimular”, acredita Lilián. “A
eficiência dessa equipe é medida por quantas mulheres deixam de
interromper a gravidez. O problema é que a lei não está baseada em
evidências científicas, mas na suposição do legislador de que o aborto é
uma prática ruim. Se desnaturaliza o que deveria ser uma intervenção
de uma equipe profissional baseada em evidências científicas. Uma
equipe profissional não deveria fazer intervenções morais, e sim
técnicas”.
- Não é a lei que nós havíamos proposto, mas é um projeto que avança
em matéria de reconhecimento em serviços de saúde a dar atenção às
mulheres que estejam gravidez e decidem a interromper. Não consagra o
direito da mulher sobre seu próprio corpo, que era a pedra angular, o
fundamento do projeto apresentado no senado no ano passado”, admite a
líder da Frente Ampla e relatora do projeto, senadora Mónica Xavier.
“Não se pode negar que é um avanço porque não manda as mulheres ao
circuito da clandestinidade para comprar o medicamento que se usa para
interromper a gravidez. Empenhando um dinheiro que não têm, correndo o
risco de cometer um delito e trazem riscos para a sua saúde – defende.
As palavras do ministro de Saúde Pública, Leonel Briozzo, dão a
síntese do debate ao dizer que “mantém-se o status do aborto, mas não
se condena a mulher que passa por este complexo e doloroso processo. O
Uruguai criou um novo modelo que é, entre o aborto seguro, legal, e o
aborto inseguro, ilegal, é o aborto de menor risco”.
Consulta popular e novos argumentos
Mesmo não sendo a lei que os movimentos pró-direitos uruguaios
queriam, a entrada em vigor parece ser responsável por uma mudança na
atitude de instituições contrárias à mudança. Com pouca presença na
sociedade, mas com grande influência política, instituições religiosas,
principalmente a católica, resolveram partir para o embate social. A
faixa estendida no sexto andar de um prédio na principal avenida de
Montevidéu com a frase “Aborto = Muerte ¡No al Asesinato!” e a
realização de uma passeata intitulada Marcha de Valores no dia 10 de
novembro, que reuniu cerca de 100 pessoas contrárias ao aborto e
a “imoralidade sexual”, em referência ao projeto de lei em tramitação
que regulamenta o matrimônio igualitário, dão sinais disso. Além disso,
e de maneira ainda mais contundente, deputados do Partido Nacional do
Uruguai prometem para o dia 1º o lançamento de uma campanha pública de
coleta de assinaturas para a convocação de uma consulta popular sobre a
lei de regulamentação do aborto.
Apesar de pesquisas apontarem que cerca de 60% da população do país é
favorável à despenalização, o porta-voz do Partido Colorado sobre o
assunto, o senador Alfredo Solari, acredita na mudança de opinião da
população. “As pessoas ainda estão formando sua convicção, agora em cima
de uma proposta concreta.
As coisas podem mudar muito até o
referendo.” Solari é cristão, mas garante que o primeiro aspecto que
determinou sua decisão de votar contra a lei e assinar a petição pelo
referendo é sua formação como médico e biólogo. “Estou convicto de que a
vida começa no momento da concepção. Esse é o primeiro motivo. E o
Uruguai tem longa tradição contraria à pena de morte”, explica, por
telefone. “O segundo motivo é que, por trás de um aborto, existe uma
gravidez indesejada e isso pode ser prevenido com anticoncepcionais ou
aliviado com mecanismos de adoção mais rápidos. Nós discutimos pouco
esses dois assuntos e acredito que agora temos a oportunidade de
fazê-lo.”
Ele considera que as igrejas têm pouca influência na vida dos
uruguaios. O Estado é laico e a parcela da população geral que
frequenta templos é baixa. Mas as igrejas têm forte influência política
no país. No Uruguai, não se sabe quem são os doadores de campanha e se
acredita que o clero seja um dos mais importantes financiadores de
membros dos partidos conservadores, Nacional e Colorado. “As
ingerências dos grupos religiosos no nosso pais não têm a ver com o
povo, mas com os grupos de decisão. A hierarquia da Igreja Católica tem
muito mais chances de falar com o presidente do que as organizações
sociais. Então, é verdade que o Uruguai é um Estado laico, a sociedade é
laica. Mas o que não se democratizou e continua sendo muito
influenciado pelas hierarquias religiosas são os centros de poder
político”, explica Lilián.
Por isso, o inicio de uma certa movimentação social é visto como uma
tentativa da igreja de fazer o que ainda não havia feito: conquistar
corações e mentes. “Ele vão usar todos os meios para reverter a
situação”, acredita a diretora da MYSU.
A senadora Mónica é médica e também autora da lei do parto
humanizado no Uruguai. Ela lembra que o país registra uma baixa taxa de
mortalidade materna, cerca de 29 ocorrências a cada 100 mil nascidos
vivos, contra 56 no Brasil, e apesar da estimativa de que sejam feitos
33 mil abortos por ano, o número de mortes em consequência de
procedimentos malfeitos é baixo. A senadora explica que a motivação dos
movimentos sociais para reivindicar a pauta sempre foi a garantia de
direitos.
Por isso, uma possível consulta popular colocaria em uma situação
difícil militantes que pretendiam fazer a Frente Ampla “sentir as
consequências” de ter cedido a pressões e aprovado um texto de lei
considerado “desrespeitoso” com a luta histórico dos movimentos
sociais. “Acreditamos que o resultado seria favorável à lei. Mas, de
todo modo, a instalação de um plebiscito implicaria um esforço social
enorme. E nós teríamos de lutar por uma lei que não gostamos”, relata
Lilián.
Mesmo assim, Lilián lamenta que o parlamento uruguaio – e
especialmente a Frente Ampla – não tenha atendido às demandas dos
movimentos sociais em uma conjuntura na qual, supostamente, “havia todas
as condições” para que isso ocorresse. Além da influência financeira
de grupos religiosos, ela acredita que a ligação histórica da Igreja
Católica, que teve um papel importante no combate à ditadura no país,
com os atuais líderes políticos de esquerda faz com que as “novas
contradições” da sociedade sejam ainda pautas com pouca aceitação.
- Ainda hoje a esquerda não incorporou em seus debates internos todos
esses problemas das novas contradições. As contradições de gênero, de
identidade, de sexo, de etnia, de meio ambiente. No caso do movimento
feminista, salvo as políticas públicas de igualdade de oportunidade, que
são fundamentalmente reparadoras de alguns direitos, pouco foi feito
para transformar as causas da desigualdade entre homens e mulheres.
Então, quando você lê as linhas pequenas da lei, vê que ela não é tão
progressista assim – acredita.
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