Que
diferença representa para o Brasil a eleição, pela primeira vez na nossa
história, de uma presidente mulher? No plano simbólico, é evidente que a
escolha de Dilma Rousseff para presidente ou presidenta do Brasil
revela a ausência, ou pelo menos a irrelevância dos preconceitos
sexistas na determinação do voto de grande parte dos brasileiros. Também
não houve, em público, manifestações machistas em reação aos primeiros
problemas enfrentados pela presidenta. Passados quase oito meses desde a
posse, os recentes escândalos em alguns ministérios, os primeiros
sinais de inflação e o risco de desaceleração econômica provocaram uma
queda de 8 pontos na aprovação da presidenta, que ainda -assim continua
mais alta do que a de todos os seus antecessores em início de governo-,
desde a volta das eleições diretas.
Grosso modo,
a escolha de Dilma parece ter sido mais pautada por razões políticas e
interesses de classe do que pelo imaginário de gênero. Se assim foi, o
mérito é todo dela. Durante os oito anos de seus dois governos, o
presidente Lula perdeu grandes oportunidades de politizar os eleitores
ao definir a relação necessariamente conflituosa entre a sociedade e
seus governantes a partir de metáforas ligadas à vida familiar. Fiel ao
seu estilo de “homem cordial”, na acepção de Ribeiro Couto e Sérgio
Buarque de Hollanda, Lula desde o início se apresentou como pai dos
brasileiros. Antes da campanha de 2010, já apresentava sua futura
candidata como a “mãe do PAC”. Dilma comprou o rótulo por conveniência,
mas teve o mérito de não encarnar o estereótipo maternal que faria par
com o estilo carismático e paternalista de Lula.
Quanto à
identificação de Dilma com as causas feministas, vale lembrar que a
presidenta em toda sua longa trajetória política – se contarmos desde os
anos de militância no grupo VAR-Palmares, na década de 1970 – nunca foi
uma típica militante feminista. Como outras raras mulheres
independentes de sua geração, as opções políticas da jovem Dilma
Rousseff pautaram-se antes por causas universais – liberdade, igualdade,
socialismo – do que pelas lutas de gênero, que, no Brasil, só se
impuseram com mais força depois da derrota das organizações armadas.
Quando as pioneiras das causas feministas começavam a levantar suas
bandeiras, por aqui, a militante “Wanda” estava na cadeia.
Os
preconceitos sexistas mais pesados contra ela surgiram durante a
campanha, não por parte de eleitores, mas dos adversários políticos. O
modo violento como a campanha de José Serra tentou explorar a polêmica
sobre o aborto, a meu ver, não teria sido o mesmo com um candidato
homem. Ao tentar caracterizar a possível simpatia de Dilma pela
legalização do aborto como um grave delito de opinião, Serra apostou na
convicção popular de que a mulher que não criminaliza o aborto é um
monstro que mata criancinhas. Dilma não enfrentou a polêmica com a
seriedade que o caso exigia, mas pelo menos não desceu tão baixo. Em
todo caso, nunca saberemos até onde a oposição teria chegado se a
notícia de um suposto aborto de Mônica Serra não tivesse vindo à baila.
Outro
preconceito que se manifestou durante a campanha foi o de que, sendo
mulher, a candidata não teria pulso- -firme para segurar os “radicais do
PT”. Que saudades do tempo em que o PT contava com alguns radicais a
incomodar a geleia geral do Congresso. No atual- estado da arte, o
governo Dilma corre- mais risco de se descaracterizar em -razão do
-excesso de aliados ao centro e à direita do que pela pressão de
supostos radicais à esquerda. Além do onipresente PMDB, com sua prática
de toma lá dá cá que já se incorporou ao folclore político do jeitinho
brasileiro, a barca do governo- terá- de acolher -agora os -intere-sses
do novo- PSD, criado pelo prefeito de São Paulo para abocanhar cargos e
supremacias junto ao governo federal.
Será mais
difícil a uma mulher defender-se da sedução e da chantagem de tais
aliados? Não parece. A recente “faxina” (trabalho de mulher?…) executada
pela presidenta no Ministério dos Transportes, assim como o atual
embate com a “banda podre” do PMDB, a fim de eliminar os cabides de
emprego na Agricultura, a despeito das ameaças de perda de apoio por
parte da base aliada – problema que só uma reforma política poderia
-sanar –, demonstra que Dilma teve a lucidez de perceber que com amigos
assim ninguém precisa de inimigos. O destemor da primeira mulher
presidente do Brasil, para além de sua forte história de coragem
política, pode também ser explicado pela consciência da desvantagem de
seu estilo pessoal em comparação com o -carisma popular que permitiu ao
presidente Lula ser leniente com a corrupção sem perder prestígio entre
eleitores, nem (consequentemente) apoio entre a classe política.
Na via
oposta, penso que os preconceitos favoráveis a uma candidata mulher
também não ajudam a politizar o debate. Seria uma presidenta mais apta a
“cuidar com zelo materno” de seu povo? Escolho ao acaso exemplos
brasileiros que contrariam tal premissa. Entre as poucas governadoras
brasileiras, temos Roseana Sarney, filha de cacique político que governa
o estado com o pior IDH do País. No Sul, a ex-governadora Yeda Crusius,
em 2009, colocou o aparato militar da PM do estado para intimidar os
participantes da festa dos 25 anos do MST. Maternais? Protetoras dos
fracos e oprimidos? No Senado, basta mencionar o estilo fálico de Kátia
Abreu, ativa defensora dos direitos do agronegócio contra os
ambientalistas que tentam preservar o que restou das florestas de Mato
Grosso e de outras regiões da Amazônia Legal.
A própria
Dilma, se fosse mais “maternal”, teria defendido com maior firmeza a
qualidade de vida dos operários da Usina de Jirau, submetidos a
condições subumanas no canteiro de obras da Camargo Corrêa. Ou tentaria
conciliar a brutal agenda desenvolvimentista com medidas efetivas de
preservação da natureza, em prol da saúde das próximas gerações. O
compromisso com as causas feministas poderia levar Dilma Rousseff a se
manifestar de maneira mais clara no debate sobre a descriminalização do
aborto, mas parece que o escândalo que se promoveu em torno do assunto,
durante a campanha, contribuiu para transformar o aborto numa espécie de
tabu político para a atual gestão.
Outras
questões relativas à saúde das mulheres, no entanto, ainda podem ser
contempladas no governo Dilma. Os casos mais óbvios seriam novas
políticas de proteção à maternidade, com ênfase no amparo às mães
adolescentes. Além disso, toda e qualquer melhora no atendimento à saúde
de maneira geral beneficiaria as mulheres, acostumadas a cuidar não
apenas da saúde dos filhos, mas também de pais, sogros e maridos. Ainda
há tempo para esperar da primeira mulher presidente do Brasil medidas
que diminuam a desigualdade de gênero no País, sobretudo nas classes
mais baixas.
Essa
esperança se deve ao fato de Dilma, em sua trajetória pessoal e
política, ter escolhido as alternativas progressistas que se
apresentaram à sua geração. Afinal, a característica mais marcante da
presidenta é sua longa trajetória como militante radical de esquerda.
Esse segundo aspecto de sua biografia coloca o País diante de um fato
espantoso, bem menos alardeado na imprensa: o de que há menos de quatro
décadas a atual chefe das Forças Armadas estava pendurada no pau de
arara em uma dependência clandestina desse mesmo Exército, seminua, a
levar choques elétricos, pancadas e socos até o limite da exaustão, em
consequência de sua participação na luta contra a ditadura. Ali, segundo
entrevista concedida em 2009 para o blog do Luis Nassif, a militante
“Wanda” aprendeu a “mentir adoidado” para defender os companheiros que
ainda estavam em liberdade. Ali, frequentemente perdeu a noção de tempo
entre uma sessão e outra, jogada sem roupas no chão de um banheiro frio
para refletir melhor se não seria o caso de “tomar juízo” e delatar
alguém. O pior da vida no presídio, disse Dilma na entrevista, eram os
períodos de espera, sem saber quando e como seria o próximo round com os
torturadores.
Por conta
desse episódio, Dilma Rousseff conhece o valor inestimável da
solidariedade entre companheiras de prisão, homenageadas por ela em um
dos momentos mais emocionantes da festa da posse. “Devo grande parte de
ter superado (…) e aguentado (a tortura) às minhas companheiras de
cela”, declarou Dilma a Nassif na entrevista de 2009, ao mencionar o
recurso inteligente e corajoso inventado por elas para “dessolenizar” o
medo da tortura através do humor. Cada vez que uma prisioneira era
levada para o interrogatório, as outras piscavam um olho cúmplice e
ironizavam: “Não se preocupe, companheira. Se você for torturada, a
gente denuncia…”
Graças ao
que aprendeu com essa experiência, se é que se pode escrever “graças”
num caso assim, Dilma teria desenvolvido a capacidade de manter sangue
frio diante do torturador, a calcular o que podia ser dito, porque já
era sabido, e o que deveria ser calado com falsa tranquilidade, sem
nunca afrontar o inimigo para não aumentar sua fúria. Por ironia, não do
destino, mas da política, é possível que o exercício democrático do
poder venha a exigir que a presidenta recorra, no presente, aos mesmos
recursos de resistência que soube desenvolver em sua sinistra temporada
nos porões da ditadura. Astúcia e sangue frio podem lhe valer mais do
que a força, nas inúmeras vezes em que for encostada contra a parede
pelos aliados do governo, caso decida permanecer menos leniente com a
corrupção e com o cinismo palaciano do que seu antecessor cordial.
Muito mais
significativo diante do profundo conservadorismo brasileiro do que ser
governado por uma mulher é ter uma presidenta que conheceu, por dentro e
na pele, a violência e o arbítrio da ditadura militar. Nesse quesito, a
posição tíbia dos sucessivos governos brasileiros diante da ala
conservadora do Exército envergonha o País diante do mundo, em
particular a América Latina. De Dilma, que afinal se decidiu a
substituir o sinistro Nelson Jobim no Ministério da Defesa, espera-se
uma posição decisiva a favor da abertura da investigação sobre os
desaparecidos políticos do governo militar, assim como a decisão de
tornar públicos os nomes dos assassinos e torturadores, praticantes de
crimes de Estado não contemplados pela Lei da Anistia.
Ao fazer
valer o direito das famílias dos militantes assassinados e
desaparecidos, a presidenta alcançaria também o efeito de prevenir a
perpetuação dos assassinatos de jovens das periferias brasileiras por
policiais militares, a quem, até hoje, nenhum governante disse com
firmeza que tais práticas não seriam mais admitidas por aqui. O Brasil
foi o único país da América Latina que encerrou uma ditadura sem julgar
publicamente nem punir seus torturadores. Indiretamente, os termos em
que se negociou a Lei da Anistia por aqui funcionaram como um aval para a
perpetuação da violência do Estado.
No livro O Que Resta da Ditadura: A exceção brasileira (Edson
Teles e Vladimir Safatle orgs., Boitempo), a procuradora Flávia
Piovesan cita pesquisa feita pela norte-americana Kathryn Sikkink em que
se revela que o julgamento dos crimes contra direitos humanos serve
para fortalecer, e não para enfraquecer, o Estado de Direito. A pesquisa
de Sikking revela que, depois do fim do período militar no Brasil, a
violência policial tornou-se maior do que a da Argentina durante a
ditadura.
De uma presidenta que foi presa política por ter lutado em
favor das liberdades democráticas se espera que atue decisivamente para
condenar, no passado, e eliminar, no presente, a violência dos agentes
do Estado que a sociedade, envergonhada, acostumou-se a considerar como
um traço indelével da “cultura” brasileira.
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