Portal Vermelho
Um
sol cinzento fundiu-se ao rosto de Eliude. Ela saíra de manhã, logo
cedo. Com as pernas cobertas de lama já ressequida, também no rosto
escuro tinha traços da mesma cor.
Acostumara-se à vegetação do
manguezal, no esbarro em pontas de galhos das oiticicas; dentro e nas
margens do mangue. Tinha fome, mas nenhuma pressa de comer. A comida
pouca e repetida tirara-lhe o apetite voraz. Conservou no corpo o
vestido cinza, depois de lavar os pés e as pernas, os braços e o rosto,
na torneira na frente da casa, ao lado da única porta de acesso.
No jirau, pôs meia dúzia de camurins, dez caranguejos e um punhado de
camarões; todos escuros, da mesma cor do massapê lamacento de onde foram
tirados. O filho mais velho, com 18 anos, rosto amarelo e imberbe,
absorvera da mãe a espreita paciente de ver a panela dar conta de um
pirão fornido com fiapos da carne do peixe. Também aprendera a pescar,
mas a irmã com 14 anos, gira, não saía de casa, sentada numa cadeira de
balanço, muda, distraindo-se com os olhos no voo curto das moscas. Ele a
tuteava sem cuidados, posto que ela apenas movia os olhos sob os
cabelos não rendidos ao cordão de elástico na nuca.
A hora, entrevista no chão arenoso sob o sol, anunciou a vinda da
freguesia de costume. Lúcia pediu a cachaça a Eliude; única freguesa da
birosca, franzina, sem os dentes da frente, usando um short curto,
escuro, sobre coxas tão sumidas quanto as pernas; a blusa, um cetim sem
lustro, exposto diariamente na beira-mar. Seguiu-a o marido, um negro
magro, fanho, sócio da mulher nos goles da seca bebida; usando só uma
bermuda de muitos dias sem espremedura na água. Mais alto, mas ao
curvar-se para falar com ela, uniam-se na fortuna. Atrás, dois outros
que, por não terem mulher, rendiam-se a uma conversa tão miúda quanto
suas vidas. Não tinham casa, viviam de favores, dormindo em espumas sob
um cajueiro na frente - inda que distante do muro - de uma casa de muro
alto. O dono consentira a presença deles, desde que não se aproximassem
do muro, sem se referir ao bodum dos corpos, das roupas sujas.
Os quatro se puseram em torno do jirau, apreciando os cortes de Eliude
nos camurins de escama prateada. Ela trouxera a garrafa, pusera-a ali
mesmo, ao lado dos peixes estripados.
- Não gosto de camurim porque a espinha dele é dura feito osso de boi. –
O comentário de Lúcia, inda que não enxertando mais fosfato na espinha
do peixe, serviu para, mesmo sendo pobre, não se entregar à miséria.
Eliude, familiar à confraria, olhou-a por cima dos olhos, distinguindo
no bacorejo uma ronda a sua panela de barro. Logo, antes que os
calculados goles dessem conta da cachaça, a panela sopraria uma fumaça
quente, à cata de pulmões e estômagos já avisados. Sentia, ela, o bodum
da pele seca do pescoço de cada um, dos pés descalços e por certo com
pulgas sob as unhas dos dedos, mas diluía-o no cheiro das vísceras dos
peixes. Depois, os quatro gastavam o dinheiro obtido na pedincha, na sua
bodega de prateleira vazia.
Eliude perdera o marido, e logo se acostumara à viuvez dos pobres, sem
lamúrias nem doces lembranças. Os filhos também, no sossego sem a mãe
ter que pagar aluguel na casa de dois vãos, construída pelo pai, junto a
um muro de um casarão fechado, com jeito de abandono. No fim do mês,
contas de luz e de água. Roupas, de vez em quando, porquanto o trabalho
não lhes exigia tanta força.
Esfregou sal e vinagre nos peixes, juntou-os a cebolas, coentros e batatas.
- Acende o fogo para esquentar a panela – ordenou ao filho.
Quando metade do conteúdo da cachaça fora bebida, a pressão do fogo fez a
tampa da panela subir, batendo nas beiras. O cozido soprou,
misturando-se ao cheiro de peixe cru no jirau, subtraindo o frescor das
vísceras. Com a farinha mexida no molho, o pirão encorpou.
Ela serviu os filhos ali mesmo, entre a parede e o jirau. Os dois
sentados, soprando a quentura do pirão. Depois se serviu. Não sentiu
remorsos por não oferecer aos fregueses. O costume de separar os hábitos
da família da curiosidade de estranhos, legitimara a indiferença com
que, ela também, soprasse o peixe fumegante.
Depois de lavar os pratos e talheres, trouxe a panela para fora. Segurando o cabo da colher-de-pau, disse:
- Tem uma sobra, Lúcia... Quer?
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