Blog da Boitempo
Viva, viva!
Parece que o governo percebeu que o acordo ortográfico para pretensa
unificação da grafia em todos os países de língua portuguesa não colou.
O dito-cujo,
que é um saco e parece que desagradou a gregos e goianos, teve sua data
limite de obrigatoriedade de uso adiada para 2016. Tomara que até lá
resolvam deixar o dito pelo não dito, esquecer o malfadado acordo e
voltar à ortografia “antiga” ou adequar melhor essa trolha que enfeou a
nossa escrita, eliminando, entre outras coisas, o utilíssimo trema.
Antes de voltar ao assunto, abro um parêntese…
O que teve de mais condenável no governo Lula?
No início,
em 2003, achei que foi a reforma da Previdência, que contrariou toda a
história do PT e ainda por cima foi motivo para expulsão de
parlamentares fiéis ao programa partidário, que fundaram o PSOL.
As histórias
de corrupção, existentes em todos os governos, repercutiu mais no
governo Lula porque o PT vinha se apresentando com uma postura
moralista, dizendo que era o único partido não corrupto.
Então, muita gente deve achar que o “Mensalão” foi o que ocorreu de pior no governo petista.
Tendo ou não existido com tanta abrangência e força que a imprensa lhe atribuiu e o STF corroborou, para mim, não foi o pior.
Acho
imperdoável Lula ter firmado o famigerado acordo ortográfico, fruto da
cabeça de burocratas do idioma que decidiram por todos nós brasileiros e
que não pegou nos outros países de língua portuguesa.
Há uma
desculpa velha para os pentelhos que não sei porque odeiam o trema.
Dizem que só existe na língua portuguesa, ou melhor, no português do
Brasil. Mentira! Tanto que no próprio acordo se prevê a continuidade do
seu uso em palavras estrangeiras.
Exemplos?
Müller, em alemão. E o trema, em alemão, pode ser em cima do ö também.
Lembrem-se do sobrenome Köhler. Ah, e não é só em alemão. Em francês,
tem trema em cima do i, como no caso da arte naïf, que aqui se chamava
arte primitiva ou ingênua, mas como bons copiadores hoje já falamos
também arte naïf. Tem até um Museu Internacional de Arte Naïf no Rio de
Janeiro.
Então, essa
história de que trema é uma chatice da língua portuguesa não cola. E se
fosse exclusividade nossa, que mal teria? Ninguém diz que é uma chatice a
língua espanhola permanecer usando o ñ.
Outra
desgraça foi tirar o acento agudo das terminações oia e eia,
pronunciados óia e éia. Em certas circunstâncias é impossível não usar
esse acento. Por exemplo: escrevendo em linguagem coloquial, de acordo
com a pronúncia popular, temos o direito de escrever véio, e todo mundo
sabe o que é. Sem o acento, torna-se veio – será do verbo vir ou será
veio de ouro, de prata ou de outro mineral qualquer?
E véia, a
mulher do véio, coitada, sem o acento fica sendo o troço por onde passa o
sangue. A mesma coisa vale para “móia” em vez de molha. Sem o acento, a
pessoa que não entender pode recorrer ao dicionário e ver que existe a
palavra moia, sem acento, só que o significado é muito diferente.
Objetos e gêneros alimentícios que chegam à costa depois de abalroamento
de embarcações chamam-se moia.
No caso,
ainda, do uso da linguagem popular, volto ao trema: quando a gente
exprime “güenta!” em vez de aguenta, fica difícil de entender sem o
trema.
E tem coisas que ficam muito esquisitas. Por exemplo: herói tem acento, e heroico, como o acordo maldito impõe, não tem.
Muita coisa
pode até ficar mais fácil de escrever (isso é outra justificativa besta
para a “simplificação da escrita”, que não é bem uma dificuldade, mas
prova da fraqueza do sistema de ensino), mas dificulta muito para ler.
Palavras desconhecidas por alguém podem levar a pronúncias erradas, não
só por gente que lê pouco. Quem conhece todas as palavras que mereceriam
acento?
Vejam vocês
mesmos, se não engasgariam em nenhuma palavra da lista a seguir,
escritas na grafia do acordo: quinquênio, rastaquera, sequela, tranquilo
(esta, muitos nordestinos pronunciam trankilo), linguística,
quitacamba, quispá, aguilhó, equídio, equidade, equilinguístico,
quizila, exequível, quinquelíngue, anguite, aguerê, equinócio,
equivalente, equipendente, cinquena, aqueduto, Antiguidade, guirá,
unguento ou inguento, unguinoso, caquerada, eguituro, anguiliforme,
agueiro… Se usarmos o trema saberemos em quais pronunciar o u depois g
ou q, e logicamente as que não recebessem o trema seriam pronunciadas
sem o u.
Já prevejo
casos de gente pronunciar o trema onde não tem, quando defrontar com
palavras desconhecidas.
Para alguns, certas palavras são corriqueiras,
mas completamente desconhecidas por pessoas de outras regiões. Então,
vão achar burrice quando alguém que nunca ouviu a palavra quiosque lê-la
kuióskue. Vai ter gente falando pakuera, o estádio do Corinthians vai
ser em Itakuera, aquela fruta vermelha vai ser cakuí, animal grandão vai
ser pakuiderme, a pinga feita de mandioca será tikuíra, alguém vai
achar que templo muçulmano chama-se meskuíta, quem defrontar pela
primeira vez com o nome de uma raça de cachorros pequenininhos vai achar
que ele é pekuinês, quiçá vai ser kuiçá… Epa, esta palavra tem
história!
É sobre
Benedito Valadares, interventor em Minas, durante a ditadura de Getúlio.
Tinha fama de ser mal alfabetizado (apesar de formado em odontologia) e
ler erradamente os discursos que escreviam para ele.
Então, discursando
sobre a grandeza de Minas Gerais, leu do papel escrito por um assessor:
“Minas é o celeiro do Brasil e cuíca do mundo”. Pegou mal. Estava
escrito quiçá, mas ele errou três vezes numa só palavra tão simples:
pronunciou um trema inexistente, não pronunciou a cedilha e nem o acento
agudo no final.
E o
personagem serve para eu terminar este artigo sobre o acordo que é um
desacordo dirigindo ao Lula uma expressão relacionada ao ex-governador
mineiro, cuja origem qualquer dia eu conto aqui: Será o Benedito?
Nenhum comentário:
Postar um comentário