Em 1983, bem antes do fim da ditadura, denunciei três grandes escândalos
financeiros urdidos nos bastidores do sistema autoritário, os quais
ficaram conhecidos como o caso Delfin-BNH, o caso Coroa-Brastel e o caso
Capemi. Foi a inauguração do jornalismo investigativo na área econômica
no Brasil, contribuindo fortemente para a desmoralização do regime. Era
investigação jornalística crua: sem Polícia Federal, que só pensava em
prender opositores políticos; sem Ministério Público, sem CPI, sem
quebra de sigilos, sem escuta telefônica.
Trabalhei
exclusivamente a partir de documentos vazados por empregados e
funcionários públicos insatisfeitos com a corrupção em suas empresas ou
instituições, e com depoimentos verbais rigorosamente conferidos por no
mínimo três testemunhas. Nunca fui processado por civis que
eventualmente questionassem minhas afirmações. Fui processado, sim, por
dois ministros de Estado com base na antiga Lei de Segurança Nacional,
aquela que criminalizava a intenção subjetiva, e não só os atos
supostamente contra o regime.
Escapei de condenação porque o juiz
militar de primeira instância entendeu que, ao contrário do que a LSN
não previa, me devia ser dado fazer a prova da verdade. Não precisei
fazer. Na verdade, já estava feita nas reportagens. Com isso os
ministros, um deles chefe do SNI, o outro da Agricultura, desistiram da
ação. Comparo isso, em pleno regime militar, com o jornalismo dito
investigativo que tem sido feito no Brasil em pleno regime democrático. É
o jornalismo da espionagem, da invasão da privacidade, da exposição
pública de suspeitos, do achincalhe de inocentes, da opinião
prevalecendo sobre a informação.
Na verdade, não existe hoje no
Brasil (e no mundo) algo que mereça mais uma investigação jornalística
séria do que o próprio jornalismo. Luís Nassif e Paulo Henrique Amorim
vêm fazendo esse papel. Eu costumo rejeitar teorias conspiratórias, mas
neste caso as evidências são óbvias. Uma delas vem de fora, o caso
Murdoch, da Fox . Na Inglaterra, ele montou um sistema de espionagem de
centenas de personalidades para alimentar um jornalismo de chantagem do
sistema político. Nos EUA, ele tentou inventar um candidato a presidente
da República que seria apoiado por seu império de comunicação.
Qual
é o pano de fundo dessas atividades jornalísticas criminosas, que põem
em risco até as maiores e mais antigas democracias do mundo? A pista é o
próprio Murdoch, o bilionário das comunicações. A articulação da grande
mídia com as grandes corporações mundiais, notadamente os bancos,
constitui uma base de poder incomparável nas democracias. Os bancos
financiam a mídia para que a mídia faça a lavagem cerebral nos eleitores
em defesa de seus interesses. A isso se deveu o sucesso ideológico
espetacular do neoliberalismo nas últimas décadas. (Vejam aqui as
críticas da mídia à queda dos juros!)
O processo foi facilitado
pela desestruturação da União Soviética. Durante o governo Yeltsin, a
imensa máquina de espionagem russa ficou completamente desamparada e sem
objeto, até que foi em parte recuperada por Putin. No intervalo, porém,
muitos espiões ficaram virtualmente sem emprego na Rússia e no mundo. A
meu ver, boa parte deles foi recrutada por corporações jornalísticas
inescrupulosas como jornalistas ou simples informantes remunerados por
“trabalho”, e colocada a serviço dos sistemas financeiros.
E no
Brasil, o que está acontecendo? Primeiro, há um problema estrutural no
mercado jornalístico. Sob pressão da Internet, que comanda o processo de
produção de notícias, o espaço dos jornais se estreitou. Para
sobreviver lhes resta o campo da análise, da crítica, do lazer etc. Mas e
as revistas? Bem, as revistas ficaram com um espaço ainda menor. Sua
circulação está caindo, com ela a publicidade. Para reagirem, só têm o
espaço do escândalo. E para publicar escândalos contratam espiões, dos
quais os jornalistas são meros redatores.
Não é possível com os
meios de que disponho fazer prova direta disso, mas é só prestar
atenção nas indiretas. Quem publica escândalo semana sim, semana não?
Quem contrata espiões como informantes, tal como ficou comprovado na CPI
do Cachoeira, infelizmente abortada? Quem obtém (ou compra) da Polícia
Federal fitas com degravações de escutas telefônicas sigilosas? Quem
tem acesso a processos do Ministério Público ainda protegidos por
sigilo? Quem manipula parlamentares com chantagens?
Pessoas de
boa fé acreditam que essa é a única forma de identificar corruptos.
Minha experiência, como indicada acima, diz que não é. Além disso, a
maioria dos corruptos se protege, nada de ilegal tratando por telefone.
Mas o que acontece quando há um corrupto na linha grampeada por ordem
judicial falando com Deus e o mundo? Podem ser centenas, e grande parte
inocente. Mas sua privacidade é invadida e colocada à mão de policiais
que, se forem corruptos, têm ali farto material de chantagem. Por acaso
alguém controla isso, já que tudo pode vazar impunemente?
É
claro que toda essa situação coloca um desafio e um risco imenso para a
democracia no Brasil. A ameaça maior é que a violação de direitos
recorrentemente praticada pela mídia está sob a bandeira de um bem
público maior, a liberdade de imprensa. Não é conveniente jogar fora o
bebê com a água da bacia.
Contudo, é preciso aproveitar algum fato
concreto para se criar uma CPI. Além disso, o Executivo deveria
reorganizar seu sistema de informações, talvez criando uma Agência
Nacional de Segurança como os EUA, integrando numa só estrutura órgãos
que hoje se encontram sem qualquer supervisão e controle.
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