Eric Nepomuceno - Carta Maior
Foi numa noite incerta de 2003, em Bali, uma das mais de treze mil ilhas
da Indonésia. Julio Poch, argentino de nascimento, naturalizado
holandês, piloto da companhia aérea Transavia, uma subsidiaria da KLM,
estava bebendo com vários colegas de trabalho. E, no auge da empolgação,
começou a contar algumas de suas façanhas voadoras.
Contou, por
exemplo, que durante a ditadura que esmagou seu país entre 1976 e 1983
havia trabalhado como piloto da marinha de guerra. Falou da ESMA, a
Escola Mecânica da Armada. Tentando ser mais explícito, Poch disse que
havia sido piloto em alguns ‘voos da morte’, quando presos políticos
eram dopados, levados para os aviões e despejados no mar, no rio da
Prata ou no delta do rio Paraná.
Na verdade, ele não tinha
falado nada de seu país até que, a certa altura, alguém da animada mesa
de bar perguntou sobre a princesa Máxima da Holanda, argentina como ele,
filha de Jorge Zorreguieta, que foi ministro da Agricultura dos
militares. E então, ao ouvir a palavra ditadura, Poch começou a falar
demais.
Primeiro, disse que seus colegas tinham uma imagem
distorcida do que havia acontecido na Argentina. Defendeu o pai de
Máxima, suspeito de crimes de lesa-humanidade em seu país, e que por
isso mesmo foi impedido de comparecer ao casamento da filha com o então
príncipe, e hoje rei da Holanda, Guilherme Alexandre. E explicou que, na
verdade, o que aconteceu na Argentina foi uma guerra contra
terroristas. E, numa guerra, como se sabe desde o principio dos tempos,
morre gente.
Embalado pelo próprio discurso, acabou contando dos
voos da morte. E, mais embalado ainda, justificou tudo. Disse que jogar
pessoas vivas de um avião era, até certo ponto, um jeito mais humano de
matar alguém. As vítimas, esclareceu, ‘estavam todas dopadas, não
sofriam nada’.
Dois dos que presenciaram aquela confissão
macabra, Tim Weert e Erwin Brouwer, resolveram denunciar Poch. Contaram
detalhes do que ouviram: os prisioneiros eram despidos, amarrados,
drogados com pentotal, conduzidos para um avião e, a certa altura,
despejados no ar por uma porta aberta.
Não foi, é verdade, a
primeira denúncia sobre os voos assassinos. A primeira – aliás, mais que
denúncia: confissão – foi a que o capitão da Marinha Adolfo Scilingo
fez em 1995 a Horacio Werbitsky, um dos mais talentosos e contundentes
jornalistas argentinos. O livro ‘O voo’, de Verbitsky, foi um dos
maiores êxitos da Argentina, e chegou às mãos do juiz espanhol Baltazar
Gazrón.
Naquela altura, Garzón investigava a morte de alguns de
seus compatriotas nos voos noturnos da ditadura. Levado pela maré de
arrependimento, Sicilingo viajou para a Espanha para colaborar com suas
investigações. Contou que participou de dois desses voos, e jogou no ar
30 presos. Depois do arrependimento, Sicilingo, diante do tribunal,
tentou negar o que havia confessado. Não adiantou nada. Acabou
condenado, em 2005, a exatos 1.084 anos de prisão. Cumprirá 30, tempo
máximo previsto pelas leis espanholas, sem apelação possível. Continua
preso. Deverá sair da cadeia em 2026. Se estiver vivo, terá 80 anos.
Agora,
quem enfrenta um tribunal – desta vez, na Argentina – é outro desses
pilotos, quase tão famoso como Sicilingo. É o mesmo Julio Poch que bebeu
demais certa noite de 2003 em Bali. O mesmo Julio Poch que explicou que
jogar pessoas vivas de um avião era uma forma humanitária de matar, já
que, dopadas, elas não percebiam nada, não sofriam nada.
Nega
tudo, claro. Diz que houve um mal-entendido. Que ele disse, naquela
malfadada noite em Bali, ‘nós fazíamos’, e não ‘eu fazia’ voos da morte.
Foram centenas de presos da ESMA atirados em pleno voo. Dos
quase 5.200 prisioneiros que passaram pela ESMA, menos de 200 estão
vivos. É o maior símbolo do horror que foi a ditadura argentina de 1976 a
1983.
Seis anos depois da noite em Bali, Poch foi preso em
Valência, Espanha, em 2009. Tinha ido fazer turismo com a família. Ali
começou a ruir uma nova vida que ele havia construído com esmero em
1980, quando em plena ditadura conseguiu passar para a reserva e meses
depois foi contratado pela Aerolíneas Argentinas. Em 1989 passou para a
KLM. Imagino que nas duas empresas deve ter sido advertido para não
jogar passageiros no oceano.
Em 1995 ganhou a cidadania
holandesa. E agora, diante de um tribunal em Buenos Aires, diz que foi
uma vergonha ter sido arrancado de seu lar holandês apenas por ter
emitido opiniões pessoais sobre a política argentina de uma determinada
época. Ou seja, seu único delito, diz ele, foi opinar.
Mostra, impávido, os registros de todos os voos que fez enquanto esteve na Marinha. Em nenhum deles aparece um ‘voo da morte’.
Julio
Poch terá direito ao que as vítimas da ditadura que ele diz que não
houve jamais tiveram: um julgamento justo. Terá direito a se defender.
E, se for considerado culpado, será enfim condenado – mas não receberá a
pena de morte que ceifou umas 30 mil vidas em seu país.
E, por
falar em registro, lembro que agora mesmo foram descobertos, em São
Paulo, registro de visitas às masmorras do DOPS – o nefasto Departamento
de Ordem Pública e Social – durante a nossa ditadura. Em seus anos mais
negros, o DOPS de São Paulo foi um dos centros mais vigorosos da
repressão. Ou seja: da tortura, da humilhação, da vexação, da morte.
Esses
registros mostram que civis passavam horas nos locais onde se
torturava, se violava, se massacrava gente. Nomes surgirão, claro, e
entre eles haverá novidades importantes. Já se sabe que um funcionário
do SESI, que é controlado pela FIESP, era visitante assíduo. Já se sabe
que o então cônsul dos Estados Unidos em São Paulo também frequentava o
local. A novidade, então, será conhecer os nomes. Das barbaridades,
sabemos todos.
Há uma diferença básica e essencial entre o que
acontece na Argentina e no Brasil, com relação ao passado e ao direito à
memória, à verdade e à justiça.
Na Argentina, gente como Poch é
julgada, se defende e, quando condenada, vai presa. Aqui, trata-se de
investigar o que aconteceu, e como aconteceu o que aconteceu. Mas uma
esdrúxula lei de anistia, imposta por uma ditadura moribunda, foi
confirmada por um bizarro Supremo Tribunal Federal. Ou seja, a corte
suprema da justiça do Brasil assegurou, patética, o direito à
impunidade.
Aqui, ninguém será julgado. Ninguém será absolvido, ninguém será condenado, ninguém será punido.
Aqui,
a aberração da impunidade contou e conta com a cumplicidade dos
guardiões máximos da nossa corte suprema. Bizarra corte, bizarra
decisão.
Sob o meu olhar
Aqui neste blog, vocês poderão ver, ler e comentar a respeito do que escreverei. Por meio deste meu olhar sincero, tentarei colocar artigos e dar minha opinião sobre questões atuais como politica, problemas sociais, educação, meio ambiente, temas que tem agitado o mundo como um todo. Também escreverei poesias e colocarei poemas de grande poetas que me afloram a sensibilidade, colocarei citações e frases pequenas para momentos de reflexão.
É desta forma que vou expor a vocês o meu olhar voltado para o mundo.
É desta forma que vou expor a vocês o meu olhar voltado para o mundo.
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