21/02/2013

Dos males de beber além da conta e lembrar em vez de esquecer

Eric Nepomuceno - Carta Maior

Foi numa noite incerta de 2003, em Bali, uma das mais de treze mil ilhas da Indonésia. Julio Poch, argentino de nascimento, naturalizado holandês, piloto da companhia aérea Transavia, uma subsidiaria da KLM, estava bebendo com vários colegas de trabalho. E, no auge da empolgação, começou a contar algumas de suas façanhas voadoras.

Contou, por exemplo, que durante a ditadura que esmagou seu país entre 1976 e 1983 havia trabalhado como piloto da marinha de guerra. Falou da ESMA, a Escola Mecânica da Armada. Tentando ser mais explícito, Poch disse que havia sido piloto em alguns ‘voos da morte’, quando presos políticos eram dopados, levados para os aviões e despejados no mar, no rio da Prata ou no delta do rio Paraná.

Na verdade, ele não tinha falado nada de seu país até que, a certa altura, alguém da animada mesa de bar perguntou sobre a princesa Máxima da Holanda, argentina como ele, filha de Jorge Zorreguieta, que foi ministro da Agricultura dos militares. E então, ao ouvir a palavra ditadura, Poch começou a falar demais.

Primeiro, disse que seus colegas tinham uma imagem distorcida do que havia acontecido na Argentina. Defendeu o pai de Máxima, suspeito de crimes de lesa-humanidade em seu país, e que por isso mesmo foi impedido de comparecer ao casamento da filha com o então príncipe, e hoje rei da Holanda, Guilherme Alexandre. E explicou que, na verdade, o que aconteceu na Argentina foi uma guerra contra terroristas. E, numa guerra, como se sabe desde o principio dos tempos, morre gente.

Embalado pelo próprio discurso, acabou contando dos voos da morte. E, mais embalado ainda, justificou tudo. Disse que jogar pessoas vivas de um avião era, até certo ponto, um jeito mais humano de matar alguém. As vítimas, esclareceu, ‘estavam todas dopadas, não sofriam nada’.

Dois dos que presenciaram aquela confissão macabra, Tim Weert e Erwin Brouwer, resolveram denunciar Poch. Contaram detalhes do que ouviram: os prisioneiros eram despidos, amarrados, drogados com pentotal, conduzidos para um avião e, a certa altura, despejados no ar por uma porta aberta.

Não foi, é verdade, a primeira denúncia sobre os voos assassinos. A primeira – aliás, mais que denúncia: confissão – foi a que o capitão da Marinha Adolfo Scilingo fez em 1995 a Horacio Werbitsky, um dos mais talentosos e contundentes jornalistas argentinos. O livro ‘O voo’, de Verbitsky, foi um dos maiores êxitos da Argentina, e chegou às mãos do juiz espanhol Baltazar Gazrón.

Naquela altura, Garzón investigava a morte de alguns de seus compatriotas nos voos noturnos da ditadura. Levado pela maré de arrependimento, Sicilingo viajou para a Espanha para colaborar com suas investigações. Contou que participou de dois desses voos, e jogou no ar 30 presos. Depois do arrependimento, Sicilingo, diante do tribunal, tentou negar o que havia confessado. Não adiantou nada. Acabou condenado, em 2005, a exatos 1.084 anos de prisão. Cumprirá 30, tempo máximo previsto pelas leis espanholas, sem apelação possível. Continua preso. Deverá sair da cadeia em 2026. Se estiver vivo, terá 80 anos.

Agora, quem enfrenta um tribunal – desta vez, na Argentina – é outro desses pilotos, quase tão famoso como Sicilingo. É o mesmo Julio Poch que bebeu demais certa noite de 2003 em Bali. O mesmo Julio Poch que explicou que jogar pessoas vivas de um avião era uma forma humanitária de matar, já que, dopadas, elas não percebiam nada, não sofriam nada.

Nega tudo, claro. Diz que houve um mal-entendido. Que ele disse, naquela malfadada noite em Bali, ‘nós fazíamos’, e não ‘eu fazia’ voos da morte.

Foram centenas de presos da ESMA atirados em pleno voo. Dos quase 5.200 prisioneiros que passaram pela ESMA, menos de 200 estão vivos. É o maior símbolo do horror que foi a ditadura argentina de 1976 a 1983.

Seis anos depois da noite em Bali, Poch foi preso em Valência, Espanha, em 2009. Tinha ido fazer turismo com a família. Ali começou a ruir uma nova vida que ele havia construído com esmero em 1980, quando em plena ditadura conseguiu passar para a reserva e meses depois foi contratado pela Aerolíneas Argentinas. Em 1989 passou para a KLM. Imagino que nas duas empresas deve ter sido advertido para não jogar passageiros no oceano.

Em 1995 ganhou a cidadania holandesa. E agora, diante de um tribunal em Buenos Aires, diz que foi uma vergonha ter sido arrancado de seu lar holandês apenas por ter emitido opiniões pessoais sobre a política argentina de uma determinada época. Ou seja, seu único delito, diz ele, foi opinar.

Mostra, impávido, os registros de todos os voos que fez enquanto esteve na Marinha. Em nenhum deles aparece um ‘voo da morte’.

Julio Poch terá direito ao que as vítimas da ditadura que ele diz que não houve jamais tiveram: um julgamento justo. Terá direito a se defender. E, se for considerado culpado, será enfim condenado – mas não receberá a pena de morte que ceifou umas 30 mil vidas em seu país.

E, por falar em registro, lembro que agora mesmo foram descobertos, em São Paulo, registro de visitas às masmorras do DOPS – o nefasto Departamento de Ordem Pública e Social – durante a nossa ditadura. Em seus anos mais negros, o DOPS de São Paulo foi um dos centros mais vigorosos da repressão. Ou seja: da tortura, da humilhação, da vexação, da morte.

Esses registros mostram que civis passavam horas nos locais onde se torturava, se violava, se massacrava gente. Nomes surgirão, claro, e entre eles haverá novidades importantes. Já se sabe que um funcionário do SESI, que é controlado pela FIESP, era visitante assíduo. Já se sabe que o então cônsul dos Estados Unidos em São Paulo também frequentava o local. A novidade, então, será conhecer os nomes. Das barbaridades, sabemos todos.

Há uma diferença básica e essencial entre o que acontece na Argentina e no Brasil, com relação ao passado e ao direito à memória, à verdade e à justiça.

Na Argentina, gente como Poch é julgada, se defende e, quando condenada, vai presa. Aqui, trata-se de investigar o que aconteceu, e como aconteceu o que aconteceu. Mas uma esdrúxula lei de anistia, imposta por uma ditadura moribunda, foi confirmada por um bizarro Supremo Tribunal Federal. Ou seja, a corte suprema da justiça do Brasil assegurou, patética, o direito à impunidade.

Aqui, ninguém será julgado. Ninguém será absolvido, ninguém será condenado, ninguém será punido.

Aqui, a aberração da impunidade contou e conta com a cumplicidade dos guardiões máximos da nossa corte suprema. Bizarra corte, bizarra decisão.

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