A prestigiada revista britânica 'The Economist' publicou, na edição
de 4 de maio de 2013, um artigo enganador sobre as hidrelétricas na
Amazônia, com ênfase em Belo Monte: “The rights and wrongs of Belo Monte”
(Os acertos e erros de Belo Monte). O texto tenta dar a impressão de
abordar parcimoniosamente os “dois lados” de uma “questão complexa”, mas
na verdade defende descaradamente nosso modelo energético ultrapassado e
devastador. Mais do que isso, advoga pela construção de novas barragens
com grandes reservatórios na Amazônia, o que redundaria no
aprofundamento dos seus impactos ecológicos e sociais. O truque começa
no título que sugere que o projeto Belo Monte tem um lado bom e outro
ruim, enquanto que, na verdade, tudo está errado em Belo Monte.
Mas, afinal, quais seriam os aspectos positivos desta obra? “Visite a
área e Belo Monte hoje se parece imparável e muito menos danoso ao meio
ambiente do que alguns de seus críticos advogam”, observou o autor. Mas
como que Belo Monte, tão precocemente, já poderia parecer menos
destruidor do que previsto? Os sítios de trabalho da obra de construção
da barragem estão gerando uma devastação completa. E não é verdade que
já eram apenas áreas devastadas antes da obra. Extensas florestas com
castanheiras centenárias (árvores protegidas por lei) já foram
derrubadas. Mas não é simplesmente dessa devastação que falavam os
críticos, mas de um processo muito mais amplo, longo e complexo. O fluxo
natural do rio ainda não foi sequer totalmente bloqueado. Então, apesar
de o nível do Xingu estar mais alto do que geralmente estaria nessa
época do ano, retardando o aparecimento das praias, qualquer pessoa bem
informada e bem intencionada sabe que o impacto do seu futuro barramento
ainda nem de longe pode ser sentido. Aliás, as áreas a serem alagadas
ainda nem foram desflorestadas.
Acima de tudo, o impacto da explosão populacional nessa região
sensível da Amazônia só se fará sentir quando as obras acabarem e as
hordas de desempregados partirem literalmente para a pilhagem da
floresta a fim de sobreviver. Então, não há a possibilidade de se dizer
que Belo Monte tem causado menos impacto do que o previsto. O comentário
lembra até a piada do sujeito que cai do alto de um prédio e, ao passar
pelo terceiro andar, já perto do chão, pensa: “até aqui tudo bem!”.
Por um lado, é observado no texto da revista britânica o fato de que
os canais que desviarão a maior parte do fluxo natural do rio Xingu ao
longo da Volta Grande evitarão o alagamento das terras indígenas naquela
área. Mas é ignorado que a grande tragédia para aqueles índios,
possivelmente ainda maior do que seria o alagamento, será o fim do rio
que sempre lhes deu sustento ao passar em frente de suas aldeias. Com o
desvio da maior parte da água, o rio se transformará em sua maior parte
em uma sequência de lagos abandonados, criadores de mosquitos e garimpos
auríferos, que serão a desgraça dos índios e demais moradores da
região. Em outra passagem da reportagem, o autor observa que: “a Norte
Energia separou 3,9 bilhões de reais para o pagamento de ações de
mitigação e compensação. Os construtores devem construir escadas para
peixes, um translocador de barcos para manter o rio navegável, casas
para 8000 famílias, escolas, infraestrutura de saúde, redes de esgoto e
muito mais”, completando maliciosamente: “para ativistas em Altamira e
os índios locais, isso não é o bastante”.
Isso é enganação pura. Qualquer pessoa de boa fé que venha à cidade
investigar o assunto saberá imediatamente que todas essas ações são
fictícias. Praticamente nada tem sido feito para amenizar os impactos de
Belo Monte sobre a cidade que hoje vive o colapso em seu já precário
sistema de saúde. Nenhum hospital foi construído. Um deles, que antes
servia a população, foi reservado para trabalhadores da barragem. O
acesso à educação também é precário e o trânsito ficou caótico. As
escadas de peixes também não funcionarão porque seus “usuários”, peixes
de corredeiras, serão prontamente devorados por piranhas assim que
adentrarem o ambiente do lago. Ademais, pesquisadores já demonstraram a
inutilidade destas estruturas para as populações de peixes migratórios.
Elas simplesmente não funcionam bem. E o serviço de translocação dos
barcos tem feito grandes estragos sobre a estrutura física das
embarcações.
De perto, Belo Monte é um lixo, mesmo aos olhos mais “engenheiros”.
Os construtores são tão porcos e desleixados com a infraestrutura mínima
da cidade que, no próprio acesso ao seu “quartel general”, não há
qualquer iluminação e nem sequer uma pintura de faixa no chão que ajude
minimamente a evitar acidentes. Na porta de seu escritório central, o
que se vê são buracos, lixo espalhado e trânsito caótico. Se eles fazem
isso bem no caminho que são obrigados a percorrer todos os dias,
imaginem como deixam o resto da cidade.
E o que falar da proliferação dos prostíbulos, alguns com moças
trabalhando em condição análoga à escravidão, conforme relatos
publicados recentemente nos grandes jornais, dentro da área diretamente controlada por Belo Monte,
conforme denúncia do Ministério Público Federal? As vítimas foram
trazidas de van de Santa Catarina para Altamira, fechadas em quartos
precários com trancas do lado de fora e vigiadas para não saírem do
local. O Consórcio Construtor de Belo Monte tentou se eximir da culpa
dizendo não ter responsabilidade sobre o funcionamento do “cabaré”. Mas é
necessário passar por duas guaritas controladas por eles para se ter
acesso ao local. E só entra e sai quem eles autorizam. Os trabalhadores,
construtores da barragem, vivem sozinhos, longe de suas famílias, e
precisam de sexo fácil. Como se resolve isso? Simples assim. Numa época
em que o tráfico de seres humanos e a escravidão são escândalos de marca
maior e usualmente recebem destaque da mídia, só isso colocaria em
xeque a obra. Mas vale tudo para Belo Monte.
O texto da The Economist cita o trabalho do professor Philip
Fearnside, do Instituto Nacional para a Pesquisa na Amazônia (INPA), que
compara os lagos das hidrelétricas na Amazônia a “fábricas de metano”,
um “gás do efeito estufa muito mais poderoso” que o CO2. Mas associa o
debate a desastres “do passado” no que se refere às hidrelétricas na
Amazônia, como o lago de Balbina, formado nas proximidades de Manaus na
década de 1980. Sob esse critério, Belo Monte seria uma usina “altamente
eficiente”, como Itaipu. Mas faz questão de ignorar a preocupação do
professor Fearnside, importante crítico das barragens no Xingu, de que
as futuras barragens que serão construídas ao longo do rio Xingu, com o
desenvolvimento do sonho dos governos militares da década de 1970, da
sequência de várias barragens no Xingu, que gerariam os tais 20.000MW,
gerariam uma quantidade colossal de metano, que contribuiria em muito
com o envenenamento da atmosfera do planeta. Nem poderia deixar de
ignorar, pois um dos grandes pontos defendidos no artigo é que o Brasil
estaria perdendo uma grande oportunidade ao deixar de fazer grandes
reservatórios na Amazônia. Ao invés disso, seu autor prefere citar a
bobagem da resolução governamental de que Belo Monte seria a única
hidrelétrica do Xingu. No momento necessário, uma simples canetada da
“presidenta” muda a norma. Isso é fácil para um governo que já alterou
por Medida Provisória, em nome da construção de barragens, o formato de
Unidades de Conservação.
“Tendo gasto pesadamente para fazer o terceiro maior projeto de
engenharia elétrica do mundo, o Brasil corre o risco de ter um retorno
pobre do seu investimento de 14 bilhões de dólares”, é o subtítulo da
matéria. Que Belo Monte sozinho é um fiasco econômico não é novidade e
todo mundo sabe. No período de debates que antecedeu a construção da
obra, os críticos de Belo Monte cansaram de repetir isso. Mas o
jornalista, ao invés de lembrar nossos alertas para essa questão,
preferiu, fantasiosamente, atribuir a nós a suposta previsão de que,
imediatamente começadas as obras, toda a natureza da região
imediatamente se evaporaria como que por mágica.
Não surpreende que o jornalista da The Economist não tenha qualquer
sensibilidade quanto ao meio ambiente, mas mesmo na sua área está claro
que ele não fez o “dever de casa” direito. De todas as falhas do texto, a
mais grave para uma revista de economia é a análise pueril sobre a
necessidade de Belo Monte: “com dezenas de milhões de cidadãos saindo da
pobreza, o Brasil pode satisfazer a demanda apenas se adicionar cerca
de 6.000MW todos os anos ao longo da próxima década à sua capacidade
instalada de 121.000 MW”. Para quem conhece minimamente a questão, e o
pessoal da The Economist está ciente disso, na verdade, não é para
carregar as baterias dos smartphones, e funcionar os DVDs e os
ventiladores da nova classe média brasileira, que estão sendo gastos
tantos bilhões na construção de tantas hidrelétricas na Amazônia. Essa é
a mentirinha favorita da grande imprensa brasileira para convencer o
povão de que as hidrelétricas na Amazônia são necessárias. Na verdade,
esse investimento todo é para a mineração eletrointensiva da região.
Para converter bauxita em alumínio, não para a nossa indústria, mas para
ser exportado, com energia barata embutida, para atender à demanda do
mercado internacional.
Dizer que o Brasil tem sorte em poder explorar o imenso potencial
hidrelétrico da Amazônia equivale a dizer que tivemos “sorte”, desde o
descobrimento em 1500, de ter imensas florestas de pau-brasil, que foram
devastadas para a exportação de corante vermelho, ou uma imensa Mata
Atlântica, a ser devastada para as monoculturas canavieira e cafeeira
baseadas no latifúndio e na mão-de-obra escrava-negra.
A mensagem central da revista para os investidores que a consultam
para se informar sobre o mundo é de que Belo Monte é inevitável. O resto
é bobagem para passar o tempo do leitor na cadeira do avião, com o
recurso, já batido, de tirar barato com a cara do diretor de cinema
hollywoodiano James Cameron, que comparou os construtores de Belo Monte
aos vilões de seu blockbuster Avatar. Também veio a Altamira a atriz
Sigourney Weaver, que enfrentara o monstro de Allien na pele da tenente
Ripley. Mas que, diante do Belo Monstro, preferiu recuar e nunca mais
voltou. O Exterminador do Futuro, Arnold Schwarzenegger, também
apareceu, mas amarelou. Infelizmente, apesar de toda lambança, sobre a
inevitabilidade de Belo Monte, não dá para dizer que o artigo da The
Economist está errado.
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