Hoje,
podemos nos perguntar (ou talvez devemos) sobre o que resta da ditadura?
Passados cerca de 30 anos do fim do regime autoritário, poderíamos
dizer que a transição para a democracia continua em andamento? Quando
assistimos a ocorrência de violência institucional, desrespeito aos
direitos do cidadão ou aos direitos humanos, forte desigualdade social,
pouca participação popular nas decisões, teríamos um sinal de que
estruturas herdadas do período ditatorial permanecem? Ou um modelo de
democracia no qual o povo, elemento fundamental para as decisões
políticas, encontra-se com presença reduzida nas instâncias de governo?
Muito se diz
sobre as ditaduras argentina e chilena terem sido as mais violentas do
continente devido ao numero de mortos e desaparecidos (cerca de 30.000 e
5.000, respectivamente.; no Brasil, a cifra atinge pouco menos de 500
casos). Por outro lado, enquanto no Brasil a ditadura processou mais de
7.000 opositores, na Argentina este numero não passou de 700. Houve no
país uma grande ditadura, mas que soube construir uma judicialização da
repressão.
Contudo, se
medirmos uma ditadura pelas marcas e estruturas por ela deixadas para o
presente, poderíamos dizer que a ditadura brasileira foi uma das mais
violentas. Ela imprimiu nas relações institucionais e políticas
nacionais uma indefinição entre o democrático e o autoritário, nas quais
o legal e o ilícito, o legítimo e o injusto, o justo e o abuso de
poder, a segurança e a violência são lançados em uma zona cinzenta de
indistinção. A promessa democrática de se desfazer das injustiças do
passado e de produzir os remédios necessários para o tratamento do
sofrimento social autorizam tanto as ações sociais de diminuição da
precariedade da vida social, quanto legitimam o acionamento de medidas
emergenciais ou violentas, sem respeito a um modo partilhado de lidar
com a vida social e política.
Há no país
um modo de conjugar lei e anomia que fica mais evidente quando
analisamos como foi encaminhada a transição entre o regime ditatorial e a
democracia. O Brasil é o único país do continente a não ter punido nem
mesmo um agente do estado responsável pelas graves violações de direitos
durante a ditadura. Na Argentina, por exemplo, já são mais de 200
condenados, muitos deles oficiais de alta patente.
As Forças Armadas
brasileiras não assumiram, até hoje, a responsabilidade institucional
sobre os mais de 20 anos obscuros da história do país. É comum, até
hoje, ouvirmos militares da ativa e da reserva fazendo o elogio do
período de repressão, como se não fosse possível termos democracia se
antes não houvesse ocorrido a perseguição, a tortura e o assassinato de
brasileiros que não pensavam como as elites do país.
Práticas de
sucessivos governos democráticos, tais como: a impunidade gerada pela
Lei de Anistia; a gestão do Estado com medidas provisórias; o trato do
sofrimento social através de ações administrativas sem sua inclusão na
lei (por exemplo, Bolsa Família); a tortura nas instituições de
segurança e punição; a presença do Exército nas periferias de grandes
capitais; o desrespeito às normas de uso público de verbas para a Copa
do Mundo; um dos maiores índices de homicídios por parte da polícia no
mundo; e a ausência e o silenciar dos movimentos sociais nas decisões do
Estado são exemplos da presença de algo de autoritário no estado de
direito.
Inaugurou-se
uma democracia social cuja herança das injustiças e carências do
passado (sofremos ditaduras, escravidão, extermínio de índios, problemas
crônicos nas áreas de saúde, educação, alimentação etc.) justifica a
adoção de medidas necessárias e terapêuticas. Sob a promessa de desfazer
os erros cometidos (sempre em outro governo, outro Estado, outra
história) e diminuir o sofrimento social, autoriza-se o acionamento de
medidas emergenciais que dispensam os procedimentos democráticos. Tais
medidas não são ilegais e se encontram dentro do ordenamento. Contudo,
deveriam ser autorizadas somente em situações especiais e de alta
necessidade. A forma como se utiliza na atualidade é uma espécie de ato ilícito autorizado pelo lícito.
Uma lógica
política que se evidencia neste processo e se caracteriza como algo
comum às democracias contemporâneas são os cálculos de governo. Segundo
esta lógica, há toda uma série de relações de forças em conflito que não
podem ser reguladas pelo direito. O ordenamento jurídico inclui em suas
letras o que pode ser observado em sua regularidade e repetição. Mas há
algo que escapa às séries regulares: a ação política singular e
inovadora. Não podemos prever o resultado das relações de forças,
mobilizações de opinião pública, vulneráveis aos acontecimentos
aleatórios e modificáveis pelas constantes alterações na capacidade de
luta dos envolvidos. E, justamente, o modo com que o estado de direito
lida com o não regular é através de um cálculo de governo.
Na lógica da
governabilidade democrática se realiza a conta do que é provável,
compondo com as forças mais poderosas e fixando uma média considerada
possível, além da qual praticamente nada será permitido.
No cálculo da
política de estado os restos são computados, mas possuem um valor
diferenciado – ora sendo importante para dar vazão às ações
reivindicatórias, mas, por outras vezes, sendo manipulados para
autorizar a medida autoritária com a qual o governo imporá suas
decisões. A política do possível cria um consenso cujo resultado é o
bloqueio dos restos resultantes do cálculo, notadamente os movimentos de
resistência às políticas de estado.
Diante da
questão inicial deste texto, sobre o que resta da ditadura, talvez seja
possível realizar uma leve inversão em sua lógica, mas com radical
implicação na leitura da democracia. Perguntar sobre a herança da
ditadura pode indicar que as estruturas autoritárias presentes na
democracia se configurariam como uma falha no sistema. Como se ainda não
tivéssemos conseguido, com 25 anos de estado de direito, reformar as
instituições e, especialmente, uma determinada cultura social e
política. Contudo, se pensarmos em alguns elementos simbólicos da
democracia, nos parecerá que não constataremos somente a herança
ditatorial, mas a decisão política de reafirmar parte deste legado como
integrante da realidade brasileira atual.
Falamos, por
exemplo, da Lei de Anistia de 1979, a qual é lida desde então como ato
de não punição dos envolvidos com a violência do estado ditatorial. No
ano de sua criação ainda vivíamos sob o regime militar, com um Congresso
cassado pouco tempo antes, senadores biônicos – que eram indicados
pelos generais, sem participarem das eleições – e com bombas explodindo
em bancas que vendiam jornais de oposição.
Apesar da leitura de
impunidade da lei advir deste contexto repressivo, o Supremo Tribunal
Federal, em 2010, instado a pronunciar-se sobre a validade da lei para
torturadores, manteve a leitura da não punição aos responsáveis por
torturas e mortes sob o argumento de que a lei de 1979 seria o produto
de um grande acordo nacional.
Vemos, neste
caso emblemático, que aquilo que permaneceu não é mais (ou somente) uma
herança e agora se configura como o produto de um processo ruminado
pelo estado de direito e com decisão final do órgão máximo do
ordenamento jurídico. Se visitarmos outros aspectos da herança
ditatorial, veremos como parte deste legado vem se renovando nas
estruturas da atual democracia. A tortura, institucionalizada na
ditadura, é praticada largamente no atual sistema penitenciário, nas
Febens e nas delegacias. A violência policial vem crescendo
sistematicamente, ampliando seu alvo que, no presente, não é somente o
militante, mas também o jovem de periferia, o favelado, o negro etc.
Parece haver
a consolidação de uma democracia na qual a assimilação do resto da
ditadura produziu um resto da democracia. Refiro-me àqueles para os
quais certo aspecto autoritário é inequívoco e muito concreto, resultado
do que sobrou dos cálculos de governo da vida democrática. Não se trata
aqui de estabelecer uma indistinção entre democracia e ditadura. Ao
contrário, sob a superfície do discurso de uma democracia consolidada e
exemplar, encontramos formas de agir cuja astucia é serem autoritárias e
parecerem democráticas. Há algo bloqueando a efetivação de uma ação
política transformadora que nos leve a reformular a série de questões
inaugurais deste texto.
A pergunta hoje nos parece não tanto saber o que
resta da ditadura, mas qual democracia temos atualmente e qual queremos
no futuro próximo?
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