Baby Siqueira abrão - Carta Maior
Emad Burnat, diretor de ‘5 Broken Cameras’ [5 câmeras quebradas], filme
indicado ao Oscar de melhor documentário estrangeiro, foi detido na
noite de 19 de fevereiro ao desembarcar no aeroporto de Los Angeles,
Califórnia, para participar da festa do cinema de Hollywood. Ele, a
esposa Soraya e o filho Gibril, de 8 anos – que também participam do
filme –, foram levados para uma área fechada nas dependências do
aeroporto e submetidos a interrogatório. Segundo as autoridades de
imigração, Emad não tinha em seu poder o “convite apropriado para o
Oscar”, seja lá o que isso for.
Emad enviou uma mensagem, pelo
celular, a Michael Moore, o polêmico documentarista de ‘Tiros em
Colombine’, ‘Fahrenheit 11 de setembro’ (filme que questiona a versão
oficial do atentado ao World Trade Center) e um dos diretores da
Academia de Hollywood. Moore denunciou a detenção a seus 1,4 milhão de
seguidores no Twitter e acionou o pessoal da Academia, que por sua vez
contatou advogados para cuidar do caso. “Pedi a Emad que repetisse meu
nome várias vezes aos oficiais da imigração e que lhes desse meus
números de telefone”, disse Moore. “Parece que eles não conseguiam
entender como um palestino podia ter sido indicado ao Oscar”, completou,
irônico.
Moore também deixou claro que faria o que estivesse a
seu alcance para impedir a deportação que ameaçava a família Burnat. E
foi bem-sucedido, porque uma hora e meia depois eles foram libertados.
“Mas só poderão ficar em Los Angeles uma semana, até o Oscar”,
esclareceu Moore. E, de novo com ironia, acrescentou: “Bem-vindos aos
Estados Unidos!”
Para Emad, a detenção não é nenhuma novidade.
“Quando se vive sob ocupação militar, sem nenhum direito, esse é um
acontecimento diário”, declarou. O filme ‘5 Broken Cameras’ é o
resultado de sete anos de trabalho de Emad, que comprou a primeira
câmera quando Gibril nasceu e passou a registrar tudo o que acontecia em
sua vila natal, Bil’in, na Cisjordânia sob ocupação militar de Israel.
Ajudado pelo israelense Guy Davidi, que esteve ao lado da resistência de
Bil’in desde os primeiros dias, foi responsável pelo pós-roteiro de ‘5
Broken Cameras’ e figura como codiretor, Emad fez um documento
fundamental para a compreensão, pelo público externo, do cotidiano
palestino sob ocupação. O título do filme faz referência às cinco
câmeras que o exército israelense inutilizou ao atingi-las com tiros.
Numa dessas ocasiões o equipamento salvou a vida do diretor – a câmera
deteve a bala atirada na direção da cabeça de Emad.
Cineasta por acaso – e por necessidade
Emad
Burnat nunca pensou em se tornar cineasta. Foi a necessidade de
registrar a ocupação – para proteger os vizinhos, pois os soldados,
receosos de um dia enfrentar o Tribunal Penal Internacional, evitam agir
com muita violência diante das câmeras –, de mostrar ao mundo, pela
internet, a realidade na Palestina, até poucos anos atrás oculta pela
narrativa sionista, e de ter provas para apresentar aos tribunais de
Israel, aos quais o exército conta histórias implausíveis mas levadas a
sério, que levaram Emad a filmar.
Ele comprou sua primeira câmera
em 2005, ano do nascimento de Gibril, para gravar seu crescimento e a
vida em família. Mas era impossível limitar-se a temas domésticos numa
vida sob ocupação militar. As incursões noturnas dos soldados, os
ataques aos moradores durante as manifestações não violentas, as
prisões, as invasões dos colonos, a construção do primeiro muro e seu
desmantelamento em 2011, bem como a execução do segundo muro, tudo era
muito impactante no cotidiano de Bil’in e merecia ser registrado.
Essa
opinião era compartilha por Guy Davidi, professor de cinema, que em
2005 passou a ir com frequência à vila palestina e chegou a morar lá por
alguns meses, para sentir como era viver sob ocupação. Guy produziu
alguns curtas sobre Bil’in, onde filmou, entre 2005 e 2008, ‘Interrupted
streams’ [‘Fluxos interrompidos’], sobre o confisco das fontes de água
palestinas por Israel. Muitas vezes Emad e Guy filmavam juntos as
manifestações, os ataques dos soldados, as detenções. Corriam os mesmos
riscos. Tornaram-se amigos.
Foi ao longo desses anos que Emad
começou a pensar em reunir seu material num longa-metragem sobre a
resistência em Bil’in. Estimulado pela família, pelos amigos e por Guy,
ele conseguiu tocar o projeto. Só não esperava o sucesso que se seguiu
ao lançamento. Cineasta por intuição, Emad ganhou o respeito e a
admiração de seus pares ao redor do mundo.
Referência ao Brasil e vários prêmios
Uma
das cinco câmeras quebradas exibe um adesivo da bandeira brasileira,
símbolo também presente na porta da casa da família Burnat, em Bil’in –
um modo de demonstrar o carinho que eles sentem por nosso país. Soraya,
esposa de Emad, é palestina criada no Brasil. O casal e os filhos mais
velhos falam um português impecável e sem sotaque.
‘5 Broken
Cameras’ é o primeiro filme palestino a concorrer a um Oscar. Além de
muito elogiado pela crítica, vem tendo uma trajetória de sucesso em todo
o mundo. Em 2012, foi indicado para o ‘Asian Pacific Screen Award’ e
ganhou o prêmio de melhor documentário no ‘Jerusalem Film Festival’; o
de melhor diretor de documentário no Sundance (também foi indicado para o
Grande Prêmio do Júri desse festival), nos Estados Unidos, e o Busan
Cinephile, do Busan International Film Festival, da Coreia. Em 2011
recebeu o Prêmio Especial do Júri e o Prêmio Especial do Público no
International Documentary Film Festival Amsterdam (IDFA), na Holanda. A.
O. Scott, crítico de ‘The New York Times’, considerou-o uma “comovente e
rigorosa obra de arte”.
Ele tem razão. No documentário, com
sensibilidade, Emad funde sua vida e a de sua família com a história da
ocupação de Bil’in. É uma história comum à maioria dos milhões de
palestinos que nasceram nos hoje dezenas de vilarejos – eram mais de 500
antes que os sionistas os tomassem à força, nos anos 1940 – que
circundam as 11 cidades da Cisjordânia, compondo as regiões distritais
daquela parte do Estado da Palestina.
Com texto de Guy Davidi, e
narrado por Emad, o filme nos conduz pelas belas paisagens de Bil’in,
mostrando a chegada dos agrimensores israelenses para a medição das
terras que seriam confiscadas; as reuniões entre os moradores e o
pessoal do grupo Anarquistas Contra o Muro, de Israel, que conseguiu o
mapa com o traçado do muro e se uniu aos bilainenses para boicotá-lo; os
primeiros enfrentamentos com o exército israelense; as prisões, a
progressão dos desafios e da violência, a consolidação da resistência, o
apoio internacional à luta não violenta de Bil’in.
Há cenas
geniais, como a do grupo de moradores que barra o avanço dos soldados na
área urbana da vila com instrumentos de percussão improvisados, numa
“bateria” ruidosa e criativa. Há também cenas difíceis, em que Emad se
vê obrigado a filmar a prisão dos irmãos e de um vizinho, um menino, e
cenas trágicas, como o assassinato de Bassem Abu-Rahmah, o Fil, até
aquele momento um dos líderes da resistência e um dos protagonistas do
filme. A sequência é dolorosa, embora o público seja poupado das tomadas
mais dramáticas.
O documentário leva o público a participar do
cotidiano de Bil’in e a vivenciar um pouco do que significa estar
submetido a uma ocupação militar. Trata-se de documento histórico,
denúncia viva dos abusos cometidos pelo exército sionista. Por isso
mesmo, a cena em que o pequeno Gibril, mal se sustentando em seus
primeiros passos, oferece um ramo de oliveira a um dos soldados
israelenses – que o aceita, com um sorriso culpado e sem jeito –
surpreende e enternece. Num momento assim não há como deixar de
questionar o mal que os sionistas têm feito aos seres humanos que vivem
de um lado e de outro do muro. Não fossem eles, provavelmente palestinos
de todas as religiões teriam continuado a conviver em harmonia na
Palestina histórica. Os inimigos e a discórdia vieram de fora. Será
possível neutralizá-los e resgatar a antiga harmonia, dessa vez juntando
ao antigo grupo os cidadãos de Israel, como propõem palestinos e
israelenses que defendem a existência de um único Estado, democrático e
secular, com direitos iguais para todos?
O impacto nos jovens de Israel
É
difícil responder a essa indagação sem levar em conta as alianças do
sionismo e seu papel decisivo nas finanças internacionais, na indústria
bélica e na tecnologia nuclear. O movimento praticamente domina os
setores estratégicos sobre os quais se desenrola o teatro do mundo. É
ele que cuida do caixa, do lucro, da produção e do roteiro do
espetáculo. Por isso, o combate não se restringe à ação dos sionistas na
Palestina. Eles se espalham cada vez mais, controlando governos,
territórios e ramos de atividades nos cinco continentes.
Mas é em
Israel que seu controle se estende a toda a sociedade. Lá, o sistema
educacional garante apoio e submissão aos princípios sionistas nesta e
nas futuras gerações. Assim, quem nasce em Israel aprende, desde a
infância, que os palestinos são “árabes que vivem em território
israelense” – e inimigos. A maior parte dos livros didáticos faz pouca
referência à Palestina – nos mapas, por exemplo, Cisjordânia e Gaza são
mostradas como território de Israel – e a sua história. A grande maioria
dos jovens israelenses não sabe que seu país ocupa outro, e tem de seu
exército uma visão heroica e romântica, fabricada pela propaganda
sionista.
Contribui para essa ilusão um programa muito comum nos
feriados e nos fins de semana em Israel: os pais costumam levar os
filhos pequenos a locais onde são expostos equipamentos de guerra, que
as crianças podem experimentar, e veículos nos quais elas entram e
fingem controlar. Tudo sob o olhar complacente da família e diante das
explicações de jovens soldadas e soldados. Para entender como essa
indústria da violência funciona, assista ao vídeo produzido pelo
israelense Itamar Rose: http://youtu.be/Qp67KehlVGU.
Não
é de admirar, portanto, que as crianças de Israel desenvolvam a ideia
de que a solução de seus problemas – ou daquilo que lhes é ensinado como
“problema” – passa pela via militar. Foi para desfazer essa crença que
Guy Davidi decidiu mostrar ‘5 Broken Cameras’ a um grupo de jovens em
Israel e filmar suas reações. Suas expressões, durante a exibição do
documentário, dizem muito sobre a revelação de como é a vida dos
palestinos: indicam surpresa, choque, consternação, revolta, compaixão.
Diante
dessa experiência, Davidi resolveu elaborar um projeto maior: levar ‘5
Broken Cameras’ ao público israelense em sessões que permitam reflexões e
debates sobre a ocupação, a violência imposta aos palestinos de maneira
direta e aos israelenses de modo indireto, o dia a dia dos cidadãos dos
dois lados do muro, o próprio muro, o questionamento ao papel do
exército e à ideologia dos soldados – que, como eu mesma pude comprovar
nas muitas conversas que travei com eles, têm dos palestinos e dos
árabes uma imagem deturpada, assimilada em uma existência inteira de
educação dirigida e controlada. Conheça a surpreendente experiência de
Guy Davidi com os jovens israelenses: http://youtu.be/i1wEszQYEzg.
Será
que a arte pode promover compreensão e tolerância, aproximando duas
populações separadas pela agenda bélica e expansionista das autoridades
sionistas? Será que a mudança necessária pode começar da base de ambas
as sociedades, as únicas instâncias portadoras de legitimidade para
isso? É uma aposta ousada, a dos diretores de ‘5 Broken Cameras’.
Aguardemos os resultados.
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