O processo de favelização urbana no Brasil é antigo. Pelo menos desde
a abolição da escravatura, no final do século 19, os ex-escravos das
cidades foram segregados em zonas de risco. Foram enxotados para os
morros, beira de córregos e outros locais, mesmo insalubres, onde
ficassem longe dos olhos das pessoas de fino trato, como os antigos traficantes de escravos, comerciantes, altos funcionários da República etc.
Tal processo tomou um vulto muito mais vasto durante o final dos anos
1960 e nos anos 1970, quando a ditadura militar executou o programa de
modernização dos latifúndios. Dinheiro público a rodo, através do Banco
do Brasil, financiou a derrubada de antigas culturas agrícolas e de
matas, para o replantio de novas culturas e pastagens, com a utilização
massiva de máquinas agrícolas.
Tudo com a finalidade principal de criar um exército industrial de reserva de baixo preço para a industrialização do milagre econômico
da ditadura. Cerca de 30 milhões de lavradores foram expulsos do campo e
engrossaram o mercado de trabalho urbano. Mas a crise dos anos 1970
esvaiu o milagre, estagnou o processo de crescimento e deixou como saldo
uma imensa massa populacional excedente ou excluída desse mercado.
A população urbana brasileira saltou de 36% para 84%. Criou-se um
tipo de urbanização caótico e favelizado nas grandes e médias cidades,
que contrasta as áreas de prédios e condomínios de luxo com as áreas de
construções extremamente precárias. Tipo de urbanização que ganhou
dimensões ainda mais terríveis com o aumento do desemprego, da pobreza e
da miséria. E que foi agravado pela grilagem de terras urbanas e pela
especulação imobiliária, que consistentemente empurraram os mais pobres
para novas zonas de risco de diferentes tipos, ainda mais distantes e
mais perigosas.
Nessas condições, os atuais desastres naturais causados pelas
mudanças climáticas apenas estão colocando à mostra a fragilidade
daquele tipo de urbanização, que transformou as cidades brasileiras em
aglomerados disformes e em horrível contraste com suas belezas naturais.
E, além disso, tornam gritantemente evidente a inoperância de uma
extensa gama de autoridades públicas, que ainda não se deram conta de
que não adianta mudar os flagelados para novas moradias em outras áreas
de risco.
As cidades mais afetadas pelas calamidades naturais precisam não só
atender emergencialmente aos afetados, garantindo-lhes uma moradia digna
durante o processo de reconstrução, mas principalmente sofrer profundas
transformações urbanas, principalmente levando em conta que as
calamidades naturais quase certamente se repetirão no futuro. Não
adianta mais tomar como referência os antigos parâmetros de risco. É
necessário multiplicá-los por dois, três ou mais vezes, de modo a
proteger as cidades de enchentes e deslizamentos devastadores.
Além disso, é inconcebível que, dois anos após as calamidades
anteriores, haja cidadãos e cidades que praticamente continuam na mesma
situação de desamparo e de destruição, mesmo tendo recebido recursos
para a reconstrução. Por isso mesmo, o governo federal não pode ficar
apenas na exclamação indignada da presidenta a respeito da adoção de medidas drásticas.
A presidência da República deve ter poderes legais para criar, na
Casa Civil, na Secretaria Geral ou em outros órgãos diretamente
subordinados, grupos de trabalho especiais que possam exercer
fiscalização e acompanhamento constantes e diuturnos sobre a execução
dos projetos de reurbanização e adaptação das cidades afetadas.
O que significa influenciar essas cidades a projetarem mudanças
profundas no antigo tipo de urbanização. Essas mudanças devem incluir a
proteção contra os deslizamentos de terras. A drenagem de córregos, rios
e águas pluviais deve ser reestruturada. Os sistemas de coleta e
tratamento do lixo sólido e fluído precisam ser profundamente
reorganizados. A construção de moradias deve levar em conta a mecânica
dos solos, algo que parece ser desconhecido de algumas construtoras. A
arborização das ruas, avenidas e espaços públicos precisa se tornar uma
rotina. E há uma série de outras medidas que, há tempos, vem sendo
colocada em discussão por muitos urbanistas e que precisa ser observada.
Se é para valer a decisão de medidas drásticas, não bastam
os repasses de verbas públicas para as emergências e para as
reconstruções do mesmo tipo anterior. Também não bastam as cobranças
através dos canais formais e burocráticos. É preciso muito mais para dar
início a uma reurbanização que sirva de exemplo para as demais regiões
urbanas, já que todas elas correm o risco de ter que enfrentar novas
calamidades provocadas pelas mudanças climáticas. A antiga urbanização
está falida, mostrando ser incapaz de suportar os novos climas. Ou as
medidas drásticas se direcionam nesse rumo, ou as calamidades naturais
se tornarão um ralo sem fundo dos recursos públicos.
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