Léo Lince - Correio da Cidadania
Monteiro Lobato escreveu que, quando Deus fez o mundo, havia um lugar
onde se amontoavam as belezas naturais. Concluída a obra da criação,
percebeu-se que sobrara no sítio maravilhas em demasia. Como era o
sétimo dia, reservado ao descanso, Ele houve por bem deixar tudo lá
mesmo. No Rio de Janeiro, o almoxarifado de Deus.
O mar em todas as suas cores e formas, montanhas e florestas em
recortes e volumes talhados no molde da harmonia. Uma pletora de beleza
que propicia o exagero de festas. Aniversário, por exemplo, o Rio
comemora três vezes a cada ano: a chegada, o padroeiro e a fundação, em
datas aglomeradas no esplendor do verão.
Em 1502, no primeiro dia de janeiro, os portugueses, inebriados,
avistaram o que parecia ser a foz de um rio maior que o Tejo. Daí nos
veio o nome: Rio de Janeiro. No primeiro de março de 1565, o capitão
Estácio de Sá fundou o acampamento inicial. Daí nos veio o aniversário
oficial. Dois anos depois, no dia 20 de janeiro, São Sebastião, na data
de seu martírio, nos livrou, miraculosamente, dos calvinistas franceses.
Daí nos veio o padroeiro.
Cidade mundial e, ao mesmo tempo, expressão concentrada da alma
brasileira. Está no seleto leque de cidades que o mundo inteiro conhece e
aprecia, mas se move ao som do pandeiro e do tamborim. Os atabaques da
cultura popular ensolarada e as tradições libertárias do seu povo fazem
do Rio, apesar do todos os percalços, um espaço permanente de
experimento e criatividade.
Nem tudo, no entanto, são flores. A cidade foi sede da Corte e de
suas intrigas. Foi capital de uma República rala, que por conservar o
domínio oligárquico ainda não faz jus ao nome. Palco para muitos dos
principais acontecimentos na nossa história, o corpo da cidade exibe as
marcas dilacerantes do tumultuário processo político brasileiro.
Entre os males contra o Rio, o maior de todos é a pequena política.
Os mercadores do interesse puro tomaram conta do templo majestoso. Um
desastre social, ético, ambiental, estético, cultural e político.
Desviada de sua função maior, a política opera como um balcão de
negócios. O chamado “urbanismo de mercado” espalha sua malha criminosa
que destrói coisas belas e patrocina o caos.
Aos 448 anos de existência, o Rio navega entre a beleza e o caos. Ver
a cidade reconciliada com a alegria inigualável da sua gente, sem
dúvida, seria o melhor presente de aniversário. Mais Lota de Macedo
Soares, que idealizou o Aterro do Flamengo, menos Eike Batista, que quer
privatizá-lo. Apesar das mãos atadas e do peito coberto de flechas, o
santo padroeiro acredita no samba: o Rio ainda pode se salvar.
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