Por Pedro Andrade
O caminho da Rodovia MS-295 revela uma triste paisagem: os imensos
campos de soja, que se estendem por todos os lados até onde os olhos
podem ver no horizonte. Por cada quilômetro que passamos nos deparamos
com uma paisagem inexoravelmente idêntica à anterior. Em uma das
porteiras posso ler as palavras “Fazenda Feliz Progresso”. Não posso
deixar de pensar no que consiste esse progresso e no que a ideia de
progresso esconde. Victor Hugo afirma que o progresso é uma engrenagem
que, quando começa a funcionar, sempre esmaga um ser humano. Em “Ondas e
Sombras”, um dos mais belos capítulos de Os Miseráveis, o
progresso é retratado como a impiedosa marcha da sociedade humana, que
não dá atenção às almas que se vão perdendo. Nessa viagem eu também pude
conhecer a outra face do progresso.
Chegamos ao Mato Grosso do Sul com uma autorização de participar da
visita local do Ministério Público Federal às comunidades
Guarani-Kaiowá, em nome de nossa organização, a Advogados Sem
Fronteiras. Tivemos a honra de ter como nosso guia uma liderança Guarani
ameaçada de morte, que já conhecíamos no papel, mas não pessoalmente.
Por coincidência, estávamos começando a trabalhar em uma denúncia à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos que pedia a proteção, por
parte do Estado brasileiro, justamente para essa liderança local.
A Rodovia MS-295 nos levava para a comunidade de Pyelito
Kue/Mbarakay, que havia sido responsável pela carta de “morte coletiva”,
na qual declaravam que somente sairiam mortos de sua tekoha – suas terras tradicionais –
e que tanta projeção deu recentemente à causa Guarani-Kaiowá.
Felizmente, a comunidade já não enfrentava mais o risco de uma
reintegração de posse (um “despejo”), devido ao sucesso do recurso
interposto pelo Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul
(MPF/MS) e pela Advocacia-Geral da União (AGU), na figura do Procurador
Federal Frederico Aluisio C. Soares (1). Entretanto, a comunidade ainda
estava submetida a uma grave realidade.
Em um vídeo produzido pela ASCURI (Associação Cultural dos
Realizadores Indígenas) em 24 de outubro de 2012, uma liderança local
relatava a dificuldade de acesso a alimentos, a ausência de entregas de
cestas básicas pela FUNAI e falta de visitas por parte da FUNASA – a
despeito da presença de um grande número de crianças no acampamento. Um
ataque de grupos privados de segurança havia sido perpetrado em 23 de
agosto de 2011, que chegou a ser classificado de “genocídio” pelo
MPF/MS, no qual diversas mulheres, crianças e idosos ficaram feridos.
Após esse ataque, a comunidade foi obrigada a se refugiar em um
território de somente dois hectares, que impossibilitava as mínimas
condições de subsistência. A única possibilidade de entrar e sair do
acampamento atualmente é através do largo rio Jogui (Hovy). Para
atravessar, a população local precisa passar pelo rio, tendo somente
como apoio um fio de arame que foi amarrado de um lado ao outro da
margem. É mediante essa travessia que passam crianças, idosos, mulheres
carregando seus filhos ou homens carregando as cestas básicas recebidas
por meio de um cordão amarrado em suas cabeças. O problema do envio de
cestas básicas parece ter sido temporariamente resolvido, uma vez que,
com a recente mobilização da Força Nacional no Mato Grosso do Sul (2),
também foram enviadas algumas cestas básicas para a comunidade local.
Também tivemos a oportunidade de conhecer uma mulher Guarani-Kaiowá
que foi estuprada por oito homens brancos quando saiu da comunidade em
outubro deste ano. Ainda assim, ela afirma que não sairá da área
ocupada. Conhecemos também uma mulher idosa que mostrou um ferimento no
braço esquerdo, decorrente de um ataque anterior, no qual ainda tinha
uma bala alojada. Na saída da comunidade, representantes do MPF/MS
tentaram apelar para a boa-fé e negociar com o fazendeiro local da
Fazenda Cambará. Pediram que ele permitisse a passagem dos indígenas
pela estrada, a fim de evitar que fossem obrigados a se deslocar pelo
rio, garantindo, assim, o seu direito de ir e vir. O fazendeiro foi
categórico: não permitiria que nenhum indígena passasse por suas terras.
O Procurador da República, Marco Antonio Delfino de Almeida, em minha
opinião um dos atores mais esclarecidos em todo esse processo, afirmou
ao final da viagem: “a situação dos Guarani-Kaiowá é pior do que um
campo de refugiados”.
Outra aldeia que visitamos foi a de Ypo'i, no município de Paranhos,
na qual fomos recebidos com danças e cantos pelos membros locais. Essa
comunidade também enfrenta algumas atrocidades peculiares. Em 14 de
novembro de 2012 o córrego que fornece água para o acampamento foi
envenenado por algum produto químico ainda desconhecido. Um dos
indígenas nos mostrou algumas fotos e um vídeo de baixa qualidade que
conseguiu fazer por meio de seu celular, o qual evidenciava uma grande
quantidade de espuma branca boiando acima da superfície do córrego. Um
funcionário da FUNAI presente afirmou que, após receber a denúncia, se
deslocou até a comunidade e coletou certa quantidade da água do rio para
análise em laboratório. Durante esse evento, afirmou que pôde sentir o
mal-cheiro que exalava do rio. Ainda aguardamos os resultados dos testes
da água coletada.
Não foi a primeira ocorrência de violência contra a comunidade de
Ypo'i. Em 31 de outubro de 2009, foi perpetrado um ataque de grupos
privados armados, no qual homens que portavam armas de fogo espancaram e
desferiram tiros aleatórios contra os indígenas que, por sua vez,
fugiram para a Terra Indígena de Pirajuí. Posteriormente, sentiram falta
de quatro pessoas, dentre as quais dois professores da escola indígena
que nunca mais apareceriam. O corpo de Genivaldo Vera foi encontrado no
córrego. O corpo de Rolindo Vera, seu primo, nunca foi encontrado (3).
Em nossa visita escutamos o relato do pai de Genivaldo, que contava como
seu filho havia sido sequestrado e morto pelos chamados “pistoleiros”.
Também escutamos o relato da mãe de Rolindo que, assim como Antígona na
peça de Sófocles, pedia pelo mais básico dos direitos, situado acima de
qualquer lei dos homens: o direito de enterrar o corpo de seu filho.
No município de Paranhos, visitamos também o acampamento de Arroio
Corá. Poder-se-ia dizer que a situação jurídica desse acampamento é sui generis
se isso não se repetisse também em outras localidades. A comunidade de
Arroio Corá já foi declarada, demarcada e homologada desde 21 de
dezembro de 2009, mas a homologação foi suspensa devido à decisão do
ministro Gilmar Mendes, no Supremo Tribunal Federal (STF). Dos 7.175
hectares demarcados pela FUNAI, apenas 700 são ocupados pelos indígenas
e, segundo o relatório da demarcação das terras de Arroio Corá,
dezessete fazendas ocupavam os 6.475 hectares restantes em 2004. Um
indígena me demonstrou incompreensão face à suspensão de um Decreto
presidencial de homologação de terra indígena, perante a qual não se
pode responder senão com o sentimento de impotência: “a assinatura do
presidente não vale nada?”. A existência de um Decreto presidencial de
homologação, de nenhuma maneira, significa a pacificação. Recentemente,
em agosto de 2012, houve um ataque de grupos privados armados na
comunidade, no qual desapareceu o indígena Eduardo Pires (4). Segundo
relatos locais, ele teria sido levado pelos “pistoleiros”. Também morreu
uma criança indígena de dois anos, chamada Geni Centurião. A comunidade
afirma que ela teria passado mal após o ataque e falecido.
Após todas essas visitas, tivemos a oportunidade de nos encontrar com
diversos outros atores relacionados com o conflito. Reunimo-nos com
membros da OAB/MS, com membros e advogados do CIMI e, até mesmo, com uma
família de fazendeiros, que pediu uma reunião com os membros da
Advogados Sem Fronteiras a fim de relatar o conflito a partir do seu
ponto de vista. Nesse encontro, eles nos relataram algumas
irregularidades na atuação das lideranças indígenas e defenderam o
direito de compensação financeira para os proprietários de boa-fé que
compraram as terras da União sem saber que eram terras indígenas. A
advogada do grupo argumentou: “Todo o problema da violência está na
ocupação das terras por parte dos indígenas, se não houvesse ocupações,
não haveria violência”. Mas esse argumento me lembra de uma frase de
Bertolt Brecht: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas
ninguém chama violentas às margens que o comprimem”.
Foi a violência a marca do relacionamento do Estado brasileiro com os
Guarani-Kaiowá desde a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI)
em 1910 e as migrações forçadas promovidas contra os indígenas no Mato
Grosso do Sul a partir da década de 1930, a fim de incentivar a
colonização do Centro-Oeste. A violência marcou a venda ilegal das
terras tradicionais dos Guarani-Kaiowá. A violência ainda marca a sua
relação com o Estado atualmente, devido à demora na demarcação de suas
terras e na suspensão de Decretos de homologação pelo STF. Os
Guarani-Kaiowá sempre foram e ainda são invisíveis para o Estado
brasileiro. São eles as verdadeiras vítimas da “impiedosa marcha do
progresso”, citada por Victor Hugo.
Nota:
1) Justiça Federal de Navirai-MS, Decisão em sede de Agravo de
Instrumento que revoga a liminar de reintegração de posse no processo nº
0000032-87.2012.4.03.6006.
2) Portaria MJ nº 2.169 de 19 de setembro de 2012, “Operação Guarani”.
3) Processo nº 0002988-16.2011.4.03.6005.
4) Em 13/08/2012, a pedido do MPF/MS, foi instaurado o Inquérito Policial (IPL) 0387/2012.
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