23/11/2012

Qual a alternativa ao assassinato de cães e gatos? O que temos a ver com isso?


Katarina Peixoto -Carta Maior

No dia 19 de novembro de 2012 o Jornal Nacional, decerto concorrendo com pautas reiteradas da Record, levou ao ar uma reportagem que denuncia o extermínio de cães no hospital veterinário da ULBRA, uma universidade privada do Rio Grande do Sul. A matéria gerou comoção não apenas dentre os protetores de animais, mas entre aqueles que não costumam se envolver no assunto. Denunciar maus tratos contra animais sempre é bem vindo e devido, mas é preciso levar a sério o problema. Pois o problema, como se sabe, são os "perros", os cães. Os gatos, coitados, esses sequer são mencionados, mas agora, quando vem o calor, as infinitas ninhadas largadas ao léu, cevadas pelo obscurantismo que não obriga nem oferece as condições para castração de animais domésticos pelas famílias de baixa renda nos lembram que eles estão nessa.

O que fazer, diga lá você, que ficou indignado com a reportagem que saiu no Jornal Nacional, com o problema dos cães e dos gatos abandonados e em reprodução indiscriminada, sobretudo nas regiões metropolitanas das grandes cidades? Você já pensou que saúde pública passa por um centro de controle de zoonoses republicano, isto é, esclarecido e de preferência não franciscano, mas darwinista? Já se engajou politicamente no tema? Já, alguma vez na vida, considerou a hipótese de pagar alguma castração de um gato ou de um cão num abrigo ou na casa de alguém sem recursos para tanto?

Você não quer "moralizar" a coisa? Ótimo. É bom mesmo não moralizar, porque se o fizermos o resultado é adoecedor. Agora bem, vamos politizá-lo, sim, porque se trata, antes de mais, de uma questão civilizatória, sob todos os aspectos.

Ninguém precisa ter um gato ou um cão, se não o quiser. E é melhor, infinitamente melhor, não ter e não adotar - e não comprar - se não se tiver no peito e na alma o espaço para esse tipo de relação. E a razão é muito simples e biológica: cães não sobrevivem sem humanos. Cães não existem e não teriam nunca vindo à existência se nós não os tivéssemos selecionado. Qualquer abordagem evolutiva minimamente consistente pode inferir disso que nós também fomos humanizados em função de nossa relação com canídeos. O processo de domesticação dos grandes felinos é mais tardio, mas também se torna inteligível com uma lente darwinista.

Não é preciso ser refletida e consistentemente darwinista para saber que o modo como tratamos os cães reflete o modo como tratamos a nós mesmos, como sociedade. Uma sociedade que não cultiva a coleta seletiva de lixo, que não toma parte na fiscalização das prefeituras a respeito dessa atribuição elementar é uma sociedade que trata cães e gatos como lixo, esta é outra inferência de natureza darwinista. E que o faz, bem entendido, porque vive e depende de famílias inteiras que sobrevivem catando e se alimentando de lixo; essas mesmas famílias que não são mais fomentadas a se cooperativarem, mas a usarem carroças, com cavalos esquálidos e maltratados, carregando os restos dos indignados de ocasião.

Junto com a estupidez da abundância e da orgia consumista vem a cegueira necessária para o que fica pelo caminho. E os cães e gatos, nesse enredo cruel do desperdício e da falta de educação, são como tubarões-tigre que seguem os esgotos dos navios cargueiros e de turismo que empodrecem os oceanos e que, sempre que possível, dão uma voltinha nos litorais. Assim como tubarões-tigre arrancam pernas nas praias dos desavisados da miséria ambiental que assola os litorais do Brasil, os cães e gatos podem matar com a transmissão de doenças e com mordidas.

Matá-los, assim como assassinar tubarões, é uma maneira de agir como um grupo de extermínio, que sai atirando no guri negro da periferia, para não deixar mais um marginal imaginado ganhar idade. Em termos estritamente racionais, isto é, darwinistas, não há diferença alguma de tratamento. A bestialidade e a antijuridicidade é a mesma: mata-se o problema imaginário, independente de qualquer inquérito e menos ainda de qualquer compromisso com a causalidade, a natureza, as perspectivas dos problemas que a própria sociedade produz, consome e reproduz, sobretudo os imaginários, como o racismo, o machismo e o especismo.

Na Índia, hoje, há aproximadamente 10 milhões de cães abandonados. No Brasil, 20 milhões. Problema: durante décadas a fio, quando a fome endêmica e a miséria geral levavam consigo os cães ainda filhotes e os gatos, além, é claro, das crianças (de cada 4, 1 no nordeste do Brasil), não havia "o problema dos cães e dos gatos". Não havia, porque ninguém via e ninguém via porque eles morriam a rodo. Hoje, não por acaso, com a diminuição da miséria, tanto aqui, como na Índia, com a redução da mortalidade infantil e com as políticas de saneamento tendo saído, sobretudo no Brasil, da estagnação, os cães que estariam mortos há décadas atrás estão vivinhos da silva. E os gatos, idem. Cada lata de atum ou de sardinha que vai para o lixo pode alimentar uma gata prenhe e os seus filhotes. A proliferação de ratos ao redor das embalagens de yogurte que passaram a ser adquiridas pela nova classe média é um dado empírico, a ser registrado nas melhores pesquisas (que eu tenho fé virão a ser feitas) do ramo.

Eles estão aí, como os esquizofrênicos recém largados nas ruas depois da reforma psiquiátrica (que, embora bem vinda, fechou hospitais e não criou ambulatórios de qualidade), a interpelar a concepção e os limites da neurose cidadã funcional. Estão aí como os moradores de rua, psicóticos ou não, que não têm laços a serem refeitos com a sociedade, independentemente do fato de ganharem ou não um salário mínimo ou um benefício social, ou restos de comidas e de ossos. Os cães e gatos estão aí, abundantes como a abundância, espelhando, biológica e sanitariamente, a nossa barbárie.

A maioria dos hospitais veterinários faz o que foi revelado pela reportagem que denunciou a ULBRA. A maioria dos CCZs do país o faz. A maioria das pessoas ligadas à proteção animal são religiosas e sentimentalizam o seu engajamento, no mais das vezes, mergulhando as relações com os animais num repulsivo vale de lágrimas. E, em tempo, a "Sociedade Protetora dos Animais" é um ramal inexistente da Casa do Papai Noel, deu para entender? As coisas são muito difíceis num mundo em que o especismo só é superado pela crença na vontade de Deus.

Se o Ministério Público vai fazer algo a respeito, que comece com uma ação civil pública, obrigando a todas as prefeituras do RS a oferecerem serviços de castração e microchipagem. Que o Ministério Público Federal aja, enquanto o lerdo e lamentável legislativo nada faz. Que se vincule os governos dos estados ao tema, por meio da urgência da criação de delegacias de proteção aos animais. Que nenhum beneficiário do Bolsa Família ou de qualquer outro programa social precise pagar pelo atendimento veterinário e pela castração dos seus animais. E que a castração seja política pública exigível de quem é beneficiário de programas sociais, assim como o são a frequência dos filhos à escola e a vacinação, entre outros.

A alternativa à eutanásia em massa é a castração, a consciência de que o problema é mais do que moral e mais do que de revolta pontual.

Pode-se fazer duas coisas com os ensinamentos de Darwin, neste tema como em qualquer outro: agir cinicamente e revoltar-se pontualmente, ou agir na dureza e na ordem das obrigações morais que o darwinismo impõe. O problema de agir cinicamente é que o darwinismo é, do ponto de vista moral, a perspectiva mais anticínica e socialmente consequente que há. A "grandeza de sua visão da vida" consiste em comprometer-se com a vida, sem hierarquias, sem misticismo, sem obscurantismo, sem o empréstimo misterioso de causas ad hoc para evadir-se das trevas cotidianas e da miséria em que a sociedade mergulha, sempre que lhe falta razão e sobra religião.

Parem de matar, parem de deixar procriar para depois abandonar, não abandone, não deixe de denunciar quem abandona, não jogue lixo na rua, não misture o lixo, não cultive ratos no seu quintal nem deixe que os gatos se reproduzam, mas não os mate. Mas não os matem, porque foram vocês que os criaram e eles são parte sua. Matá-los é como arrancar pedaços de si que seguem crescendo e causando dor. Não adianta e perpetua a ilusão de que o problema terá terminado. Ter quatro patas e latir não é índice de inferioridade ontológica ou ética frente à criança vítima de um pedófilo ou de um tiro.

Enquanto cães e gatos forem tratados como restos e lixo, e não como parte de nossa humanidade, pela qual todos devemos responder, esse tipo de coisa acontecerá, e às vezes, muito raramente, o Jornal Nacional, para competir com a Record que seja, contará algo que revirará os estômagos de quem deixa de seguir os feeds dos engajados na proteção animal.

Ajudar na adoção, resgatar, abrigar provisoriamente, pagar castrações, amadrinhar, participar de campanhas de arrecadação, tudo isso importa e é fundamental. Mas são ações contra a maré. E a maré é a da destruição, do descarte, do desprezo, do obscurantismo das causas finais da visão sombria de mundo, da abundância de imbecilidade.

Espero sinceramente que o Estado e os representantes políticos saiam desse mundo pré-darwinista que segue considerando o homem a imagem e semelhança de Deus e, enfim, possam começar a enfrentar essa chaga histórica-política-ética e longeva da cultura do extermínio.

Fica a pergunta para você, que leu esta mensagem: quantas castrações você é capaz de bancar por mês? Já procurou se informar? Já fez lar temporário? Já resgatou algum bicho? Já considerou a hipótese de amadrinhar algum? Saiba, o estado nosso ainda é obscurantista o suficiente para não fazer nada, e para quando o fazer, operar subrepublicanamente.

Com 70 reais você pode bancar a castração de uma gata em Porto Alegre. É um pouco mais do que duas garrafas de espumante e talvez não pague um corte de cabelo. É muito menos que duas garrafas de bons vinhos e decerto é mais barato que um bom jantar num restaurante. Resulta, apesar disso, em vidas salvas, em evitar a proliferação de doenças e interditar a barbárie dos maus tratos, do abuso, da fome, da proliferação do problema. Em breve, oxalá, haverá compensações tributárias e políticas públicas para enfrentar mais esta barbárie. Até lá, pelo menos haja uma consciência darwinista elementar, para além de indignações pontuais.

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