As classes trabalhadoras de diferentes povos travam lutas contra o capitalismo há mais de 300 anos. Acumularam uma experiência considerável de erros e acertos, derrotas e vitórias, recuos e avanços. A rigor, mais erros, derrotas e recuos do que acertos, vitórias e avanços. O que não deve nos desanimar. Afinal, para substituir o feudalismo e se impor como forma de produção dominante, a burguesia levou bem mais tempo do que isso, na maioria das vezes sendo empurrada, para avançar em seu desenvolvimento, pelas lutas das próprias classes trabalhadoras que oprimia.
Na história, a burguesia nasceu antes da classe trabalhadora assalariada. Mas só cresceu e desenvolveu o que conhecemos como capitalismo quando os camponeses foram expulsos da terra, perderam tudo que tinham, e se transformaram numa massa de pobres livres que só tinham como propriedade sua força de trabalho. Portanto, o capitalismo não é uma coisa. É a relação econômica e social, mediada pelo salário, entre os donos de capital, a burguesia, e os donos de força de trabalho, os trabalhadores livres. Estes precisam vender sua força de trabalho para obter esse salário com o qual subsistem. E a burguesia precisa do trabalhador porque é do uso da força de trabalho assalariada que arranca um valor que acrescenta ao capital investido na produção, realizando um processo contínuo de acumulação capitalista.
Essa é uma relação contraditória em todos os aspectos, cuja história está coalhada de lutas, choques e revoltas dos trabalhadores para reduzir as jornadas de trabalho, impedir o trabalho de crianças, travar o uso de máquinas que substituíam o trabalho humano, conquistar o direito de associação e formação de sindicatos, assim como os direitos de greve, de voto e de formar partido político próprio. Um dos aspectos mais estranhos dessa contradição consiste em que a classe dos assalariados só obtém força social e política para lutar se o capitalismo se desenvolveu e empregou grandes massas de trabalhadores.
Um capitalismo pouco desenvolvido, mirrado, fragmenta a classe trabalhadora e a dispersa num exército industrial de reserva amorfo e desvalido, incapaz de travar sequer a luta pelo direito ao trabalho. Por outro lado, um capitalismo desenvolvido tende a chegar ao limite do absurdo, em que acumula um capital desmedido nas mãos de poucos e tende a usar cada vez mais equipamentos tecnológicos, que elevam a produtividade milhares de vezes e substituem a força de trabalho humano. Portanto, também cria um imenso exército industrial de reserva e as mesmas dificuldades para os trabalhadores. Em ambos os casos, a solução consiste em acabar com a propriedade dos meios de produção, com a exploração e a opressão de classe, e com a distribuição iníqua e extremamente desigual da renda.
No entanto, mesmo que a luta dos trabalhadores consiga impor essa solução à burguesia, os resultados não serão os mesmos. No caso de um capitalismo pouco desenvolvido, ou seja, com os meios de produção tecnologicamente atrasados e com uma renda social relativamente baixa, a capacidade de produção tende a continuar insuficiente e a distribuição da renda, mesmo sendo igualitária, tende a continuar baixa. O melhor que se conseguirá é que não haverá ricos e pobres. Todos serão pobres, como mostraram as experiências socialistas do passado. No final, para desenvolver as forças produtivas e a renda, o Estado terá que apelar para a capacidade burguesa de gerar e acumular capital.
No caso de um capitalismo desenvolvido, a nova sociedade pode se apropriar de tudo de avançado que o desenvolvimento capitalista anterior criou, em termos de meios de produção, ciências, tecnologias, riqueza acumulada e cultura. A transformação da propriedade privada dos meios de produção em propriedade social, a liquidação das relações de produção exploradoras e opressivas, e uma distribuição de renda com equidade social se darão em condições muito diferentes daquelas presentes numa sociedade de capitalismo pouco desenvolvido.
No caso do Brasil, temos uma combinação embaraçosa de capitalismo mediamente desenvolvido, entravado pelo domínio de monopólios estrangeiros, com uma nova classe trabalhadora em crescimento, com peso relativamente pequeno de assalariados industriais. Essa nova classe trabalhadora não tem experiência de lutas e mobilizações de classe, em descenso desde a segunda metade dos anos 1980. Além disso, a presença de um governo de coalizão, em que uma parte da esquerda tem papel destacado, torna ainda mais complexas as contradições para a solução de superação do capitalismo.
Nessas condições, no Brasil a questão central imediata passa a ser a construção de uma classe trabalhadora assalariada quantitativamente forte, capaz de se tornar uma força social suficientemente poderosa para travar a luta de superação do capitalismo. Em outras palavras, no mínimo deveremos torcer para que o capitalismo se desenvolva, já que ele é o único que, desenvolvendo-se, pode desenvolver a classe dos trabalhadores assalariados. É lógico que essa contradição é embaraçosa, principalmente porque há gente que pensa que o desenvolvimento capitalista significa amainar a luta de classes e subordinar-se às políticas burguesas.
Além disso, ela se torna ainda mais embaraçosa porque, se o capitalismo atualmente predominante no Brasil se desenvolver por seu livre arbítrio, ele não vai criar mais classe trabalhadora assalariada, vai reduzi-la, substituindo-a por máquinas e inovações tecnológicas. O resultado é que a esquerda, principalmente a que está no governo e no parlamento, não pode ficar alheia ao atual desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Ao mesmo tempo em que não deve criar empecilhos à instalação de fábricas industriais modernas, com poucos postos de trabalho, deve se esforçar pelo desenvolvimento de indústrias intensivas em trabalho, capazes de multiplicar o número de trabalhadores empregados.
Já a esquerda que não tem responsabilidades de governo, terá que se empenhar, muito mais seriamente do que tem feito, para que a classe de trabalhadores assalariados em formação ganhe consciência do processo de exploração a que está submetida e passe a lutar por seus direitos, sejam os econômicos e sociais, sejam os políticos, a única forma de lhe dar consistência e força socialmente ativa na sociedade brasileira.
Isso não é muito diferente do processo em que a ditadura militar implantou a indústria automobilística no ABC paulista, com trabalhadores migrantes das áreas rurais do Nordeste, que aprenderam a lutar nas condições de repressão e emergiram como os atores que contribuíram decisivamente para dar fim ao regime militar ditatorial. Agora, um desenvolvimento capitalista estimulado pelos governos de coalizão da esquerda terá que contar com os trabalhadores que fazem parte do exército industrial de reserva das favelas e periferias urbanas, que vão aprender a lutar em condições de democracia e de combate contra as tentativas de criminalização dos movimentos sociais, podendo emergir como atores que contribuam decisivamente para as mudanças que transformem o capitalismo em outro tipo de sociedade.
Contradições puras, que só podem ser resolvidas pela luta de classes.
Por Wladimir Pomar - Correio da Cidadania
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