24/08/2011

Chico Buarque, Cheiro da Terra Brasil


Numa entrevista terna como so podia ser Darcy Ribeiro, ele nos disse que o que mais dava saudade nele do Brasil era o cheiro da gente. Exilado, nosso indianista mais ilustre nos contou que o cheiro de outras terras, das coisas, da terra, das comidas, não era o mesmo do Brasil. Assim, nosso país são os cheiros de sua gente, o da feijoada na cozinha, de goiaba no quintal, das vazantes dos nossos rios, da maresia fulgurante de nosso litoral. E onde o som brasileiro tem mais cheiro de Brasil que não em Chico Buarque de Holanda?
A música de Chico é nosso perfume mais requintado, o mais fresco e úmido, o mais nítido e brilhante, o mais melancólico e candente, o mais sincero e puro. Olor de leite fresco em carro de boi, de tempero de cravo, canela e pimenta nativa, de morena de angola batucando seu som, um samba que se confunde com a própria comida e apetite.
Um amigo de Chico, Frei Betto, em um de seus livros, no ensina que somos biodiversos, que embora sejamos habitantes do planeta terra, antes de tudo descendemos de uma gente, com sua língua e falar próprio, com um ritmo, um acento, uma musicalidade, com a sua comida que é uma forma de perpetuar um ser peculiar e pitoresco, com sua forma de vestir e, no caso do Brasil, até uma forma peculiar de se despir que chega a chocar os pudicos e puritanos de plantão. Que pintor melhor para ilustrar esta biodiversidade brasileira senão Chico?
Da mesma forma que Caymmi vai tecendo suas marinhas e eternizando junto com Jorge Amado, em quadros invejados por Portinari, o mar e a gente da Bahia, Chico expõe cantando ao mundo toda a ternura infinda do homem cordial brasileiro. Um artista dual, que faz o elogio da beleza, da alegria e do amor, sem fechar os olhos para a imensa dor do Brasil. Alguém que não se tornou sádico, mas que encara a dor de frente, espera que um samba imenso venha e faça com que o tempo pare para ouvir. Alguém que grita dos porões e não se cala diante da tortura, que estende a mão para os presos e perseguidos e que nunca se vendeu.
O artista que cantou a dor da mãe da classe média que perdeu seu filho assassinado nos cárceres da Ditadura, mas que também conseguiu captar toda a dor da mãe do morro, que anônima, esquecida, só tem identidade quando seu “Guri” traz uma bolsa já com tudo dentro para ela finalmente se identificar e vê toda sua imensa tragédia expressa em letras garrafais na morte anônima estampada nos jornais sensacionalistas.
Chico é aquele que disse não. Que deixou de fazer shows quando era o cantor mais popular do Brasil, que disse não para a TV quando muitos disseram sim, mesmo que para isto tivessem que se prostituir, que se negou a vender sua alma para a Roda-Viva, enquanto a maioria disse sim em nome da própria sobrevivência. Ele é a antítese do Fausto de Goethe. Enquanto muitos se esgoelam para conseguir um lugar na ABL (até porque agora nem saber escrever é necessário pare ingressar nela), Chico que por merecimento deveria ocupar a cadeira de maior poeta brasileiro da atualidade, nos diz que é perpétuo o manifesto assinado pelo pai dele, que se negou a competir por um fardão de uma academia que havia imortalizado Getúlio Vargas. Ele é aquele que, diante de todas as facilidades, escolheu a porta estreita da dignidade. Enquanto antigos amigos pintam o rosto com palhaços para conseguir uma nesga de atenção na mídia, Chico prefere manter seus ideais, manter sua opção socialista e demonstrar sua solidariedade a Cuba.
Corre que seu nome pertencia a uma lista negra de artistas que sofreram uma “censura branca” durante a Ditadura. A “Redentora” queria só o Chico da Banda e de Carolina, mas ele nos deu “Cálice”, “Deus Lhe Pague” e “Apesar de Você”. Num país que foi emburrecido por décadas de tirania, nosso povo perdeu a dimensão do gênio que, quase anônimo, pode tranquilamente jogar suas peladas com o Politheama, ou escalar seu escrete de Futebol de Mesa. O que para ele é muito bom, inimigo da Chicolatria, ele continua a cultivar anonimamente rosas e rimas que têm o frescor da alma dolorida do nosso povo.
Se não houvesse qualquer outra razão para gostar de ter nascido e viver no meu país, Chico Buarque bastaria. Em 60 anos ele se tornou a síntese de um outro país possível pelo qual vale a pena lutar e é nosso dever construir.

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