Por Henrique de Almeida, do Jornal do Brasil
Aprovada na Assembleia Legislativa do Rio quase um ano após o
Projeto de Lei 889 ter sido apresentado aos deputados, a Comissão da
Verdade do Rio já começou enfrentando obstáculos parecidos com os que
passaram os que desafiaram a repressão: a obstrução à investigação sobre
o período da Ditadura Militar no Brasil, entre 1964 e 1985.
Entre críticas à criação tardia das Comissões da Verdade e pedidos por
uma maior cooperação das Forças Armadas, a Comissão promete linha dura
contra os torturadores: “Quem tiver responsabilidade comprovada será
levado a juízo”. Leia a entrevista a seguir:
Jornal do Brasil: Começo pelo que vi de mais recente em
relação à Comissão da Verdade: Você, nos Testemunhos da Verdade, de
Dulce Pandolfi e Lúcia Murat, chorando durante os depoimentos. Você
considera este um símbolo desta Comissão, que procura revelar o que
houve na Ditadura no Rio de Janeiro entre 1964 e 1985, que causou a
morte e desaparecimento de 111 pessoas em todo o Estado?
Wadih Damous: “Não lembro se chorei, mas ali foi um momento muito
importante se nós colocarmos esses depoimentos em confronto com o
discurso que a máquina publicitária da Ditadura montou ao longo dos
anos. Um dos pilares das distorções históricas que a ditadura produziu é
que foi feita uma revolução para defender a democracia e salvar o
Brasil do Comunismo. Neste discurso, se excessos houve, como tortura,
foi necessário porque se vivia uma guerra, inclusive contra o
terrorismo.Claro que uma análise até mais superficial deita por terra
essa afirmação. A tortura começou a ser praticada antes de qualquer ação
armada da esquerda brasileira. A tortura foi uma marca da ditadura. E,
no caso da professora Luci Pandolfi e da cineasta Lúcia Murat, sobretudo
da Dulce Pandolfi, torturou-se por mero sadismo. Elas foram usadas como
cobaias, o que se chamava de “boneco da tortura”. Resolveu-se dar uma
aula de tortura em um determinado dia e pegaram a Dulce para essa
demonstração. Deve ser ressaltada, afora demonstrar que esse discurso da
ditadura é uma farsa, a coragem dessas mulheres. Elas se expuseram
publicamente, contaram em detalhes o suplício sofrido lá no DOI-CODI, e
isso mostra que sobretudo as novas gerações de brasileiras precisam
saber o que aconteceu neste país.
JB: A pergunta agora é de caráter pessoal, Wadih: como você,
cidadão Wadih Damous, se tornou interessado pela questão da revelação de
uma verdade envolvendo o período da Ditadura Militar no Rio, e como se
deu a sua nomeação para a presidência da Comissão?
WD: A minha consciência como ser humano, como cidadão, ela foi se
formando na época da ditadura civil-militar. Eu, já estudante de
segundo grau e posteriormente na faculdade de direito da UERJ, não
havíamos como não vivenciar o que acontecia. Ou se omitia, ou tomava-se
uma posição. E eu tomei posição. Ainda teve a minha formação, juntamente
com uma série de pessoas com quem eu também convivia. Saber que pessoas
eram torturadas, ou que desapareciam, e viver sob censura às artes, à
imprensa, e ver a perseguição ao movimento estudantil, tudo isso se
transformou em indignação. Lutei contra a ditadura de meados da década
de 70 ao início da década de 80, fui presidente do Diretório Central da
UERJ, do Centro acadêmico Luis Carpenter do direito da UERJ. E a
ditadura deixou este legado, triste e lúgubre, de mortos e
desaparecidos, além dos casos de mortos e desaparecidos. Houve também o
atentado à OAB que matou a secretária Lyda Monteiro, em 1980, a bomba no
Rio Centro, que poderia ter vitimado milhares de jovens em 1981…tudo
isso já era do nosso conhecimento e nos causava indignação, e fez muito
da minha consciência como cidadão.
JB: no dia 14 de março. Porém, a posse ocorreu somente no dia 8
de maio. Quais foram os entraves que causaram essa demora? E mais
importante: esta demora chegou a causar algum prejuízo nos trabalhos da
Comissão aqui no Rio de Janeiro?
WD: Entraves burocráticos são uma constante na máquina
administrativa brasileira. Se discutiu durante muito tempo a estrutura, o
número de assessores, os salários, e isso atrapalhou o início dos
trabalhos, porque tínhamos as indicações e nomeações, mas não tínhamos
tomado posse. Nem tínhamos lugar para nos reunir. No entanto, há
entraves políticos também. O projeto de lei levou quase um ano
tramitando na Assembleia Legislativa no Rio de Janeiro( NR: o projeto
foi publicado a 25/10/2012), e houve várias obstruções por parte de
parlamentares daqui do Rio(NR: O principal articulador foi Flavio
Bolsonaro, do PP-RJ), que não queriam a criação da Comissão. Isso
atrasou sobremaneira a instalação desta.
Agora, se nós descortinarmos o cenário nacional, nós sabemos que a
Comissão Nacional da Verdade se instalou tardiamente, quase 30 anos
depois da ditadura. Isso é ruim, porque aquele período de mobilização
pós-diretas, pós-ditadura, ficou perdido. Se naquele momento uma
Comissão fosse criada, as condições políticas seriam mais favoráveis.
Neste período, desapareceram com arquivos, perpetradores morreram,
vítimas morreram, mas nada disso vai servir de justificativa para que
deixemos de cumprir nossa missão. Espero que possamos dar nossa
contribuição para estes casos que a ditadura deixou como legado.E pelo
menos aqui no Rio já há um consenso na Comissão, entre os seus membros,
de que haverá judicialização em relação àqueles que nós constatarmos
serem responsáveis pelos fatos denunciados. Nós vamos levá-los a juízo.
Após um ano de criação da Comissão Nacional da Verdade, completado no
último dia 13 de maio, muitos ainda têm críticas quanto à atuação
desta, envolvendo falta de participação social nos trabalhos da Comissão
e o caráter sigiloso de algumas de suas investigações e o fato de a lei
não prever que ela leve à Justiça possíveis responsáveis por violações,
como aconteceu na Argentina. De que forma isso preocupa a Comissão aqui
no Rio? Isso chegou a fazer a Comissão repensar algumas de suas
prioridades?
Existem incompreensões em relação ao trabalho da comissão da verdade
tanto à direita quanto à esquerda. Á direita, obviamente, a Comissão é
vista, taxada de revanchista, “Comissão de Meia Verdade”, porque só se
investigaria um lado; E à esquerda, há entidades e pessoas que entendem
que a Comissão é governista, que não tem condições de apurar nada, quase
inútil. Para mim, os dois lados estão errados. É uma comissão de
Estado, não de governo. Ela tem uma missão muito importante, que não é
só de recontar a história, como se fosse um conclave de historiadores. É
um trabalho de investigação, que vai influir por uma nova narrativa da
história do Brasil, mas sobretudo o relatório final das comissões deve
colaborar e contribuir para que se concebam políticas públicas a partir
daquilo que foi apurado, a partir das conclusões a que se chegar a
Comissão.Um exemplo é mudar a formação dos nossos soldados, das nossas
Forças Armadas. É uma formação que remonta à Guerra Fria, à idéia de
inimigo interno. Das forças de segurança pública, das polícias, que
trabalham com o conceito de “guerra contra o crime” e praticam políticas
de extermínio, tortura, desaparecimentos…Acho que o resultado final da
Comissão, se ela tiver êxito, deve caminhar neste sentido.Aqui no Rio,
teremos os Fóruns da Sociedade, cuja segunda reunião será realizada em
breve. São reuniões mensais em que as entidades e pessoas que quiserem
participar poderão acompanhar os trabalhos da Comissão. Ali, vamos nos
submeter às críticas, elogios e sugestões de quem queira colaborar. O
sigilo será respeitado a partir do momento em que alguém que chamarmos
para depor pedir isso. Se ele em troca me der informações de onde está
enterrado Rubens Paiva, de quem colocou a bomba na OAB, de onde está
enterrado Stuart Angel, quem participou da Casa da Morte em Petrópolis,
eu aceito o sigilo.
Quando teremos a presença de agentes da repressão nos Testemunhos? A
presença de Carlos Alberto Brilhante Ustra na Comissão da Verdade, ao
chamar um vereador preso durante a ditadura de “terrorista”, causou
bastante polêmica.
Estamos tratando disso com muito cuidado. Nos depoimentos da
Pandolfi e da Lúcia Murat, elas denunciaram vários nomes, que foram
anotados. Os que estiverem no Rio serão chamados. E esses trabalhos não
partiram do zero, há o trabalho dos parentes desde a época da ditadura. O
Grupo Tortura Nunca Mais vai ceder arquivos à Comissão da Verdade, por
exemplo. As próprias Comissões de Anistia, de Mortos e desaparecidos,
também apuraram muita coisa. Então a partir desses novos trabalhos,
vamos interrogar possíveis perpetradores ou testemunhas. Hoje
mesmo(quinta-feira, 6 de junho), estou embarcando para Fortaleza, porque
me encontrarei com o ex-delegado da Polícia Federal que dirigiu o
inquérito do caso da Bomba na OAB. Ele exerce o Direito lá, e concordou
em encontrar com ele. Então, tudo será feito no seu momento, sem
atropelo, sem ansiedade, mas a partir de um itinerário que possa nos
levar a obter as informações que nós queremos, todos serão chamados para
depor.
Vocês estão instalados no prédio da OAB, onde aconteceu o atentado em
1980 que matou a secretária Lyda Monteiro, em uma carta-bomba
endereçada ao presidente da OAB. Qual o simbolismo dessa escolha de
local? E quais são os principais pontos da investigação dos atentados à
OAB em 1980 e no 1º de Maio de 1981, no Rio Centro?
Há duas razões para a nossa sede ser ali: primeiro, enfatizar a
autonomia da Comissão em relação ao Estado, sem nenhuma dependência
material. Segundo e mais fundamental, até pela minha origem e por ter
acabado de deixar a presidência da OAB no Rio de Janeiro, e a Ordem tem
uma importância institucional marcante na sociedade, e foi uma vítima da
ditadura. A bomba que vitimou a Dona Lyda tem um caráter emblemático
até hoje. Por isso que a sede é lá no quarto andar do prédio histórico
do Conselho Federal. A minha sala era a sala onde Lyda despachava. É
fundamental lembrar disso.
Recentemente, você elogiou a nomeação do advogado trabalhista
Fernando Dia, em ato do prefeito Rodrigo Neves, para presidente da
Comissão Municipal da Verdade de Niterói (RJ).Quais outras cidades já
estão se articulando para a posse de suas comissões municipais da
verdade? E algum outro equipamento esportivo do Rio foi utilizado para
este fim, segundo as investigações da Comissão, uma vez que o estádio de
Caio Martins já foi citado como local de tortura em Niterói?
Em relação à criação de Comissões Municipais no Rio, eu estive em
Volta Redonda, e já está tudo encaminhado para que o projeto de lei na
Câmara de Vereadores seja aprovado nesta segunda-feira(10). A Comissão
Municipal deve ser presidida por algum representante da OAB. Em Macaé e
em São Gonçalo, também está se criando Comissões Municipais, e também há
a presença da OAB como mola propulsora. Isso me deixa muito contente e
muito orgulhoso, porque o trabalho que desenvolvemos durante seis anos
aqui na OAB deu frutos.Quanto a outros estádios utilizados como locais
de tortura e repressão, não temos notícia ainda. Agora, se for
descoberto alguma coisa, pode ter certeza que isso será investigado.
Como está o andamento da criação do museu da repressão, no antigo
prédio do Departamento de Ordem Política e Social(Dops)? Sabe-se que
aquele prédio é pertencente à Polícia Civil. Como esta questão está
sendo resolvida?
Esse projeto se chama Marcas da Memória, com a criação de memoriais
da repressão. O equipamento do Estado que poderia servir para este fim é
o Dops, que pertence à Polícia Civil do Rio de Janeiro. O problema é
que a Polícia quer transformar também em museu da Polícia Civil. E
existe um projeto, que não é unanimidade entre membros da sociedade
civil, de dividir o espaço do prédio para dois museus. A parte superior,
onde se localizam as celas que foram palco de torturas e prisões, seria
o memorial da repressão. Isso está sendo debatido democraticamente, mas
afora isso, nós preconizamos que a Casa da Morte, em Petrópolis, está
sendo desapropriada, para que seja um Memorial, assim como a sede do
DOI-CODI(localizado no 1º Quartel do Exército, na Rua Barão de Mesquita,
na Tijuca). Mas esse é um problema que tem que ser resolvido com o
Exército, com as Forças Armadas. Nós sabemos da dificuldade que teremos
em convencer os chefes militares a transformar o DOI-CODI em um
memorial.
Como estão as investigações envolvendo as Casas da Morte em
Petrópolis? A Inês Etienne Romeu, única sobrevivente de um dos maiores
equipamentos de repressão da história Brasileira, será interrogada pela
Comissão? Como estão as negociações para tal?
A Inês, pelo menos ao que se sabe, foi a última sobrevivente daquele
verdadeiro Açougue, lá em Petrópolis. Em 1979, ela prestou um amplo,
longo e detalhado depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil. Eu presumo
que o que ela tinha a dizer ela já tenha dito. Ela sofreu, anos depois,
um assalto suspeito, onde ela sofreu uma fortíssima pancada no crânio,e
isso causou a perda de movimentos, além de prejudicar a fala e o
raciocínio dela na época. Como a Casa da Morte de Petrópolis é um dos
objetos da nossa investigação e a Inês é uma peça importantíssima, é
óbvio, ela tem que ser pensada como uma testemunha. O problema são as
condições de saúde. Alguns colegas me passaram a informação de que ela
melhorou. Se ela tiver condições, nós a convidaremos a prestar um
depoimento, e até mesmo um Testemunho da Verdade.
Você já deixou claro que a Comissão pretende investigar o
financiamento e estrutura da repressão política, com identificação de
torturadores e da cadeia de comando aos quais estes estavam
subordinados, incluindo civis.Como o empresariado está envolvido nessa
questão?
Em São Paulo, por exemplo, isso já está comprovado: membros do alto
empresariado paulista gostavam de assistir às sessões de tortura, se
compraziam disso. Não temos informações do mesmo ter acontecido no Rio
de Janeiro, mas pode ter certeza que isso será investigado.
Colocando um pouco de lenha na fogueira aqui, Wadih, eu pergunto: e a
atuação da imprensa no Rio durante a ditadura? Será investigada pela
Comissão? Existe alguma preocupação com a atuação dos órgãos de imprensa
naquele período?
O que é claro é que a grande Imprensa apoiou ativamente o golpe de 1
de abril de 1964. A maioria esmagadora das grandes empresas
jornalísticas existentes à época apoiou o golpe. Ao assumir como
verdadeiras as informações que o próprio regime fornecia acerca de
desaparecimentos, esses jornais acabaram colaborando com o
desaparecimento ao prestarem falsas informações.No caso do Rubens Paiva,
jornais noticiaram a versão da ditadura de que o deputado fugiu quando
estava sendo conduzido a uma delegacia da Quinta da Boa Vista, quando já
se sabia que ele foi morto no DOI-CODI. Houve outros casos, como o
“suicídio” de Vladimir Herzog, de que uns morreram em tiroteio quando na
verdade estavam sendo massacrados nas dependências do aparato de
repressão.Essa colaboração, de que se tem notícia da Folha da Tarde,
jornal pertencente ao Grupo Folha, de empréstimo de carros para os
agentes da Ditadura, nós não temos nada parecido aqui no Rio a
princípio. Agora, se tivermos, obviamente nós vamos torná-la pública.
O período da Ditadura é, naturalmente, um período polêmico, uma vez
que muitos de seus principais protagonistas ainda estão vivos, cada um
contando a sua versão da história. Esse é o maior desafio de uma
Comissão que se debruça sobre este período tão vivo e tão marcante da
vida brasileira?
Essa é uma missão espinhosa diante dos inúmeros obstáculos que nós
temos que enfrentar. O principal deles é sobretudo a atuação dos
militares. Mesmo os miitares dessa geração, que não têm nada a ver com
aqueles que fizeram essas barbaridades todas, eles acobertam e se
recusam a colaborar com a Comissão. Nós vimos, no depoimento do
Brilhante Ustra, foi lá proteger o Ustra. Eu não consigo compreender
isso.
Esta é uma mancha nas nossas Forças Armadas, ter se colocado a serviço
do terror do Estado, ter permitido que nas suas dependências se matasse,
torturasse, se empalasse, se barbarizasse com as pessoas. O bom senso
apontaria para que essas novas gerações de militares colaborassem no
sentido de apagar esta mancha, recuperar a sua reputação diante do povo
brasileiro. E não é isso que acontece. Eles vêm publicamente, quase
cinicamente, dizer que os arquivos não existem mais, estão queimados ou
destruídos, e acobertam os perpetradores da época. Então não será um
trabalho fácil, teremos que cruzar informações, buscar documentos,
cruzar e analisar depoimentos de um lado e de outro para vermos que se
consegue conformar uma situação o mais próximo possível da verdade. Mas,
ainda que com todos os obstáculos, vamos em frente e temos certeza que
vamos conseguir, a partir das informações que reunimos, formar um
mosaico sobre como a repressão da ditadura civil-militar funcionou, como
vitimou pessoas, instituições e como deixou um legado, até hoje não
superado, na nossa sociedade.
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