Por Slavoj Žižek
Devo
confessar que, muitas vezes, não gostei do que Hugo Chávez fazia,
principalmente nos últimos anos do seu reinado. Não me refiro às
ridículas acusações referentes à sua ditadura “totalitária” (às pessoas
que afirmavam isto, aconselharia um ano ou dois numa ditadura de estilo
stalinista!). De fato, ele fez muitas loucuras. Em matéria de política
externa, não é possível perdoar-lhe a amizade com Lukaschenko e
Ahmadinajad; em política econômica, a série de medidas improvisadas e
mal formuladas que, em vez de resolver realmente os problemas,
procuravam cobri-los de dinheiro para que não aparecessem; os maus
tratos contra os prisioneiros políticos, a ponto de merecer uma
reprimenda do próprio Noam Chomsky; até – no final – algumas medidas
culturais ridículas como a proibição dos Simpsons na TV.
Mas tudo
isto se torna insignificante diante do projeto fundamental com o qual se
comprometera. Todos sabemos que, no capitalismo global dos nossos dias,
com sua evolução espetacular, mas profundamente desigual, são cada vez
mais numerosas as pessoas sistematicamente excluídas da participação
ativa da vida social e política. O crescimento explosivo das favelas nas
últimas décadas, principalmente nas megalópoles do Terceiro Mundo, das
favelas da Cidade do México e de outras capitais da América Latina até a
África (Lagos, Chade) à Índia, China, Filipinas e Indonésia, é talvez o
acontecimento geopolítico crucial dos nossos tempos. Como, dentro em
breve a população urbana da terra superará a população rural (ou, quem
sabe, dada a imprecisão dos censos do Terceiro Mundo, já aconteceu), e
como os habitantes das favelas serão a maioria nas populações urbanas,
não temos condições de tratar com um fenômeno marginal.
Esses grupos
enormes constituem evidentemente um dos objetos privilegiados da ajuda
humanitária e das instituições assistenciais para as elites liberais –
basta lembrar de imagens emblemáticas como a de Bill Gates abraçando uma
criança indiana paralítica. Somos constantemente solicitados a deixar
de lado as nossas divisões ideológicas e a fazer algo a respeito –
quando vamos a uma loja da Starbucks para tomar uma xícara de café,
sabemos que já estamos fazendo alguma coisa, porque uma parte do preço
que pagamos vai para as crianças da Guatemala ou de outro país.
Mas Chávez
via que isto não bastava. Ele via no horizonte os contornos de um novo
apartheid. Ele via a luta de classes de outrora ressurgindo sob a forma
de novas divisões e até mesmo divisões mais profundas. E ele fez alguma
coisa a respeito. Ele foi o primeiro a não só “cuidar dos pobres”, no
velho estilo peronista, falando por eles, mas a canalizar com
determinação toda a sua energia no seu despertar e efetivamente na sua
mobilização como agentes políticos ativos e autônomos. Ele viu
claramente que, sem a sua inclusão, nossas sociedades caminharão
paulatinamente para um estado de guerra civil permanente. Basta lembrar
da frase imortal do filme Cidadão Kane, de Orson Welles, quando
Kane, acusado de falar pelos desfavorecidos contra a sua própria
classe, responde: “Se eu não defender os interesses dos não
privilegiados, alguém mais o fará – talvez alguém sem dinheiro ou
propriedades e isto será muito ruim”. Este “alguém mais” seria Chávez.
Portanto,
enquanto ouvimos todo este palavreado a respeito do “legado ambíguo” de
Chávez, do fato de ele ter “dividido a sua nação”, sempre que o expomos a
uma crítica muitas vezes merecida, não devemos esquecer o sentido de
tudo isto. Ele se referia ao povo, ao governo de, para e pelo povo. Toda
a confusão foi uma confusão criada pela dificuldade de realizar este
governo. Com toda a sua retórica teatral, Chávez foi sincero a esse
respeito, ele queria dizer isto mesmo. Seus fracassos foram os nossos
fracassos.
Ouvi dizer
que existe uma doença do coração – como órgão – que vai crescendo
excessivamente sem conseguir funcionar como deve, incapaz de bombear
todo o sangue através das veias dilatadas. Talvez Chávez tenha morrido
porque tinha um coração grande demais.
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