Baby Siqueira Abrão - Carta Maior
A resistência palestina acaba de entrar em nova fase. Com a fundação da
vila de Bab Al Shams, em 11 de janeiro, ela mostra que a partir de agora
vai criar fatos consumados para retomar, na prática, aquilo que é seu
por direito
Logo depois que a maioria dos países presentes à
Assembleia Geral da ONU de 29 de novembro de 2012 reconheceram o Estado
da Palestina nos limites anteriores à ocupação militar israelense de
1967, com Jerusalém oriental como capital, o primeiro-ministro de
Israel, Benjamin Netanyhau, decidiu desafiar a decisão. Em represália às
Nações Unidas, anunciou a construção de três mil unidades habitacionais
para colonos judeus, duas mil delas, além de centro comercial e
educacional, em al-Tur, área próxima a Jerusalém oriental que Israel
denomina E1.
Al-Tur fica no Estado da Palestina. E é
importantíssima do ponto de vista geoestratégico. Construir ali uma
extensão da colônia judaica de Ma’ale Adumin – ela também erigida
ilegalmente em território palestino –, como quer o governo israelense,
significaria dividir a Cisjordânia em duas partes.
A Palestina
ficaria, então, com três blocos geograficamente separados: Cisjordânia
do norte, Cisjordânia do sul e Gaza. Todas elas sem nenhum tipo de
comunicação umas com as outras. E sem acesso a Jerusalém.
O
impacto na população palestina, lembra o Alternative Information Center
(AIC), organização fundada e dirigida por pesquisadores palestinos e
israelenses que apoiam a causa palestina, seria “desastroso”. As
comunidades ficariam isoladas, o crescimento natural seria impedido e,
como consequência, os moradores começariam a deixar as áreas vizinhas a
Al-Tur. O caminho estaria aberto para o governo de Israel anexar mais
terras a seu território.
Além disso, cerca de 2,3 mil beduínos
que vivem em pequenas comunidades entre Ma’ale Adumin (localizada na
Cisjordânia) e Jerusalém seriam expulsos. A maioria deles, diz o AIC, é
composta de refugiados forçados a deixar o deserto de Naqab (em
hebraico, Negev), ao sul da Palestina, quando os sionistas tomaram a
região à força para fundar Israel.
Mais: aproximadamente 50 mil
palestinos das cidades de Anata, Abu Dis e Azaria ficariam praticamente
isolados do resto do mundo, espremidos entre a colônia judaica planejada
em al-Tur do lado leste e o Muro do Confisco e do Apartheid a oeste. A
única comunicação com seu próprio país seria feita por uma estrada que
corta Belém e Ramala.
Hora de mudar as regras do jogo
Pois
foi exatamente nessa área sensível, fundamental para a contiguidade do
Estado da Palestina, que mais de 250 mulheres e homens, sob o intenso
frio do fim de madrugada de 11 de janeiro, fundaram Bab Al Shams (Porta
do Sol), a mais nova vila palestina.
Ali, no platô pedregoso de
al-Tur, eles montaram, com a ajuda de ativistas de várias partes do
mundo, dezenas de barracas retangulares de tecido emborrachado branco e
creme, estruturadas com vigas de ferro. Uma delas abriga uma clínica
médica. Outra anuncia, com letras enormes, em árabe e em inglês: “Bab Al
Sham Village”.
A construção da vila é uma iniciativa única e
marca uma nova fase da resistência. Os palestinos, segundo a declaração
distribuída durante a fundação da vila, não estão mais dispostos a
esperar que o confisco de seu país se consume. A união entre comitês
populares, movimentos de jovens, organizações da sociedade civil e os
verdadeiros donos daquela área, fortalecidos pela decisão da ONU de
reconhecer a Palestina como Estado, efetuaram a ação não violenta mais
importante e decisiva dos mais de 100 anos de resistência ao sionismo – o
movimento político que tomou para si, na base do terrorismo e da força,
a maior parte da Palestina. Mas o real objetivo, como Ben-Gurion deixou
claro em carta escrita a seu filho, e como os sionistas jamais
esconderam – o projeto faz parte do programa do Likud, o partido do
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, e de outros partidos de Israel –, é
tomar a Palestina inteira.
Até hoje de manhã, os palestinos
vinham assistindo, impotentes, o governo de Israel levar adiante esse
plano, roubando suas terras, destruindo suas casas e seus meios de vida.
A construção de Bab Al Shams é o ponto de virada dessa história. Nem
mesmo os helicópteros que passaram a sobrevoar a nova vila assim que a
notícia chegou aos ouvidos do governo sionista, nem os numerosos
soldados que cercaram o local podem mudar isso.
Os palestinos
desistiram de esperar que seu direito à autodeterminação lhes seja
concedido. Decidiram conquistá-lo por conta própria. Apropriaram-se, na
prática, do que sempre foi seu. Mostraram, ao retomar suas terras, a
disposição de lutar por elas centímetro por centímetro. Colocaram os
sionistas contra o muro que eles mesmo construíram.
Em Bab Al
Shams, em meio à montagem das tendas, Abdallah Abu-Rahmah, líder do
Comitê Popular de Bil’in, declarava aos repórteres, fazendo eco ao
conteúdo da declaração de Bab Al Shams, que “Israel impôs fatos
consumados durante décadas, diante do silêncio da comunidade
internacional. Agora é hora de mudar as regras do jogo. Somos os donos
desta terra e imporemos a nossa realidade”.
Na Itália, Luisa
Morgantini, ex-membro do Parlamento Europeu, aplaudiu a iniciativa,
lamentando apenas não estar em Bab Al Sham. Em alguma parte do mundo, os
hackerativistas do grupo Anonymous aprovaram a ação direta da
resistência palestina: “Este assentamento é nosso”, declararam eles no
Twitter. “E vai permanecer de pé até que os outros [as colônias ilegais
construídas por Israel] tenham ido embora.”
Em Ramallah, a Dra.
Hanan Ashrawi, membro da Comissão Executiva da OLP, parabenizou os
organizadores e deu total apoio à ação: “Estimulamos a resistência
popular não violenta contra a ocupação israelense em todo o Estado da
Palestina”, disse ela, lembrando as privações que os palestinos
enfrentam para viver em seu próprio país. “A iniciativa é uma ferramenta
criativa e legítima para proteger a Palestina dos planos coloniais de
Israel. Temos o direito de viver em qualquer parte de nosso Estado.
Conclamamos a comunidade internacional a apoiar ações como essa e a dar
proteção àqueles que são ameaçados pelas forças ocupantes por exercerem
seu direito de resistir pacificamente à ocupação ilegal de Israel.”
A reação do governo israelense
Desafiado
por uma ação baseada em seus próprios métodos – criar fatos consumados
para tomar terras palestinas –, o governo israelense despachou soldados
para instalar postos de controle (checkpoints) nos acessos à nova vila e
para cercá-la, além de emitir uma ordem de “evacuação”, exigindo que os
moradores deixassem a área. Nenhum deles fez um único movimento no
sentido de sair dali, até porque naquele mesmo momento a Suprema Corte
de Israel decidia favoravelmente a um recurso interposto pela
resistência. Durante seis dias, declarou o tribunal, Bab Al Shams
permanece onde está.
À medida que a noite descia, em torno de
fogueiras, aquecidos por cobertores e pelo chá, a tradicional bebida
palestina, os moradores receberam a boa notícia de que a instalação
elétrica da vila estava pronta. Luzes foram acesas nas tendas, e
notebooks, já sem bateria, ligados.
Aconchegados uns nos outros,
palestinas, palestinos e ativistas estrangeiros preparavam-se para a
primeira noite da nova vila. A primeira noite de um dia muito especial,
marco da virada de um povo até então imobilizado por circunstâncias
externas.
Em 11 de janeiro os palestinos decidiram fazer as
próprias circunstâncias. A nova fase da luta contra o ocupação
prosseguirá, como afirma a histórica Declaração de Bab Al Shams, cuja
tradução vem a seguir.
Declaração de Bab Al Shams
Nós,
filhas e filhos da Palestina, de todas as partes do país, anunciamos o
estabelecimento da vila de Bab Al Shams. Nós, o povo, sem permissão da
ocupação, sem permissão de ninguém, estamos aqui hoje porque este é
nosso país e habitá-lo é um direito nosso.
Poucos meses atrás o
governo israelense anunciou sua intenção de construir cerca de 4 mil
unidades habitacionais na área que denomina E1.
Trata-se de uma
área de 13 km2 que fica no território palestino confiscado de Jerusalém
oriental, entre a colônia de Ma’ale Adumin, construída na Cisjordânia
ocupada, e Jerusalém. Não permaneceremos calados enquanto a expansão das
colônias e o confisco de nosso país continua. Portanto, pela presente
declaração, estabelecemos a vila de Bab Al Shams para proclamar nossa
crença na ação direta e na resistência popular.
Declaramos que a vila permanecerá em pé até que os donos destas terras tenham o direito de construir nelas.
O
nome da vila foi retirado da novela Bab Alshams, do escritor libanês
Elias Khoury. O livro descreve a história da Palestina por meio do amor
entre um palestino, Younis, e sua esposa Nahila. Younis deixa a esposa
para unir-se à resistência no Líbano enquanto Nahila permanece firme no
que restou da vila de ambos, na Galileia. Durante os anos 1950 e 1960
Younis sai às escondidas do Líbano e volta à Galileia para encontrar a
esposa na caverna de Bab Al Shams, onde ela dá à luz os três filhos do
casal. Younis retorna à resistência e Nahila fica na caverna.
Bab
Al Shams é a porta para nossa liberdade, é nossa firmeza. Bab Al Shams é
nossa porta para Jerusalém. Bab Al Shams é a porta para o nosso
retorno.
Durante décadas Israel tem criado fatos consumados
enquanto a comunidade internacional permanece calada em resposta a essas
violações. Chegou a hora de mudar as regras do jogo, de estabelecermos
fatos consumados em nosso país. Esta ação, envolvendo mulheres e homens
de norte a sul [da Palestina] é uma forma de resistência popular.
Nos
próximos dias criaremos vários grupos de discussão, faremos
apresentações educacionais e artísticas, passaremos filmes nesta vila.
Os moradores de Bab Al Shams convidam todas as filhas e todos os filhos
de nosso povo para participar e juntar-se à vila, a fim de dar apoio a
nossa resistência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário