Por João Alexandre Peschanski - Blog da Boitempo
Os dados da Secretaria de Comunicação Social (Secom), divulgados em 13 de setembro pela Carta Capital,
atestam a dependência da mídia brasileira em relação a subsídios
públicos. O investimento público na comunicação é positivo na medida em
que a mídia é um bem público fundamental para o funcionamento
democrático. Além disso, em muitos casos a mídia é algo que a sociedade –
o leitor, o consumidor final da comunicação – precisa, mas que não se
sustenta apenas com os fundos coletados por propaganda privada,
assinaturas e vendas. A inviabilidade mercadológica é notória na mídia
na internet.
Mas
o que os dados da Secom também revelam é o desequilíbrio e a
ineficiência do modelo atual de subsídios públicos da comunicação do
Brasil. Diz a matéria da Carta Capital:
“De um total de 161 milhões de reais repassados a emissoras de tevê,
rádios, jornais, revistas e sites desde o início do governo Dilma
Rousseff, 50 milhões foram direcionados apenas à tevê Globo. Ainda entre
as emissoras, a Globo Comunicação e Participações LTDA recebeu 833,8
mil reais e a Globosat Programadora, 810,3 mil. Isso soma cerca de um
terço de toda a verba publicitária do governo federal. A família Marinho
recebe ainda por: Rádio Globo (730 mil), Infoglobo, que edita O Globo e o Extra, 927,4 mil, Globo Participações, que cuida das operações na internet, 952,9 mil. O jornal Valor Econômico, do qual o grupo detém 50%, embolsou 164 mil. E a Editora Globo, responsável pela revista Época,
479 mil”. Nota a reportagem que esses dados levam apenas em
consideração os repasses do governo federal – matérias subsequentes
mostram que o mesmo desequilíbrio se dá nos repasses das administrações
estaduais, incluindo São Paulo – e que não entram os investimentos em
propaganda de empresas públicas, como Petrobras e Caixa Econômica
Federal. Com a divulgação dos dados, reportagens denunciaram o repasse
fraudulento de verbas públicas a veículos de comunicação inexistentes. O
desequilíbrio e a ineficiência mostram que, em pelo menos alguns casos,
o repasse de verbas se dá com base em critérios que respondem
provavelmente mais a pressões de grupos políticos, inclusive de lobby dos próprios donos dos meios de comunicação, do que do interesse público.
O modelo de
subsídios públicos à mídia brasileira precisa ser transformado. Não se
trata de impedir o investimento da sociedade na comunicação que sirva à
sociedade, mas democratizar substancialmente as decisões sobre o
investimento. O aspecto “bem público” da comunicação, definidor do
caráter democrático de uma sociedade, precisa ser aprofundado e
generalizado, no sentido de reverter os desequilíbrios e ineficiências
do modelo atual de subsídios à comunicação.
Sob
influência das propostas de Bruce Ackerman, Erik Olin Wright, Ian Ayres,
Jim Fishkin, Anne Alstott e Robert McChesney para revigorar a
democracia nos Estados Unidos, listo aqui alguns elementos que me
parecem fundamentais para um modelo democrático de subsídios públicos à
comunicação no Brasil. Obras de referência dos autores que cito são: Voting with Dollars [Votando com dólares], Deliberation Day [O dia da deliberação], The Stakeholder Society [A
sociedade das partes interessadas]. Não tenho a ambição de apresentar
um modelo acabado, mas ideias mais ou menos vagas, que ecoam em parte
posições das organizações que lutam em prol da democratização da mídia.
Vale notar mais uma vez que o princípio básico desses elementos é que os
subsídios públicos à comunicação são imperativos para o funcionamento
democrático brasileiro, e não devem ser cortados ou rejeitados, mas
aprofundados e generalizados de maneira democrática.
1. Os
subsídios públicos deveriam apenas ser destinados a veículos de
comunicação não comerciais sem fins lucrativos. Trata-se de uma
exigência forte, mas que parece ser fundamental para que a comunicação
de interesse público prevaleça em relação a estratégias de maximização
de lucros empresariais nos veículos que recebem subsídios públicos. Isso
também faz com que os repasses públicos sejam suficientes para manter
os meios de comunicação. Faz sentido para uma democracia investir
maciçamente na comunicação, na medida em que esta é um bem público. É
possível imaginar uma sociedade em que veículos de comunicação que sejam
exclusivamente subsidiados pelo público e outros que sejam totalmente
mantidos por investimento privado coexistam.
2. O destino
dos subsídios públicos deveria estar sob o controle da população, não
do Estado. O controle estatal, como os dados da Secom ilustram, pode
levar, até mesmo sem maldade intencional, a fraudes, ineficiências,
desequilíbrios, pelo simples fato de o Estado ter uma lógica interna que
o põe permanentemente sob tensão e pressão. Os subsídios públicos à
comunicação deveriam estar blindados dessa tensão e pressão. Pode-se
imaginar um modelo em que a quantia total destinada aos subsídios
públicos da comunicação seja partilhada igualmente por todos os cidadãos
brasileiros e que estes escolham entre todos os veículos de comunicação
não comerciais e sem fins lucrativos aqueles nos quais querem investir.
O poder real de investimento na comunicação, nesse cenário imaginado,
se torna profundamente democrático, já que o controle sobre os repasses é
de cada cidadão, como se votasse com a quantia que lhe cabe nos
veículos de comunicação que prefere. No governo Dilma, a administração
federal – sem contar as empresas públicas – destinou 161 milhões de
reais a repasses a veículos de comunicação, ou seja, no cenário
imaginado menos de um real per capita. É pouco para de fato empoderar o
cidadão como tomador de decisão: em virtude da importância da
comunicação para a democracia e uma sociedade funcional, é preciso
aumentar essa quantia. No caso dos Estados Unidos, McChesney estimou que
seria necessário entre 400 e 500 reais por pessoa; não há cálculo feito
ou dado consolidado para o caso brasileiro, mas é possível estimar um
valor per capita que fosse suficiente para manter um sistema
comunicacional democrático e vigoroso.
3. Todo
repasse de verbas públicas deveria ser feito almejando o máximo de
informação possível para a tomada de decisões, uma estratégia de
informação perfeita. Por exemplo, poderia existir um mecanismo, com
atualização automática, que controle os níveis de investimento em cada
veículo. Se o poder de subsidiar veículos fosse democratizado e
estivesse sob controle dos cidadãos, isso é fundamental para que os
controladores dos subsídios públicos democraticamente distribuídos
possam tomar decisões de investimento mais bem pensadas, levando em
conta veículos que já têm fundos suficientes.
4.
Evidentemente, para que um modelo de distribuição democrática dos
subsídios funcione seria preciso controle social. Para evitar fraudes, é
preciso que haja a formação de conselhos sociais para avaliar quais
meios de comunicação se qualificam como eventuais beneficiários dos
subsídios públicos etc. É fundamental que também o controle social seja o
mais democrático possível, blindado dos interesses próprios da lógica
mercadológica e estatal. Há toda uma literatura sobre a formação de
instituições decisórias participativas e democráticas; no caso da mídia,
vale conferir o livro Sistemas públicos de comunicação no mundo: experiências de doze países e o caso brasileiro
(Paulus, 2009), do coletivo Intervozes, que analisa, entre outros
pontos, vários modelos de gestão e participação de mídia no mundo. A
publicação revela o dramático déficit democrático da gestão da
comunicação pública no Brasil, em que esferas participativas e decisões
permanecem sobre o controle simples do Estado; o livro traz casos em que
há mecanismos participativos e plurais de controle da comunicação – o
que chama de modelos complexos de participação – que podem servir de
base para transformações institucionais do modelo brasileiro.
Esses quatro
pontos que proponho aqui são, claro, controversos, mas podem ser
elaborados e simulados para avaliar suas consequências e méritos tanto
em relação à eficiência da distribuição de subsídios públicos à
comunicação quanto ao funcionamento democrático. Tais propostas tendem a
concentrar a produção midiática ou torná-la mais plural? Em que medida a
coexistência de meios subsidiados comercial ou publicamente cria
problemas básicos ao modelo? Em que pontos a preocupação em blindar as
pressões do mercado e do Estado realmente é factível? Como se dará a
competição dos diferentes meios de comunicação qualificados para receber
os subsídios? Como se dará a distribuição dos fundos públicos para os
investimentos sociais na comunicação? De maneira geral, em que medida
tal proposta é desejável numa perspectiva de justiça social? A
democratização da mídia, parte de uma alternativa democrática ao mundo
como ele é, tem de ser vista como um rearranjo institucional, cujos
mecanismos podem ser pensados, simulados e discutidos ao mesmo tempo em
que se luta, no princípio, por sua realização.
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