Por Urariano Mota - Blog da Boitempo.
Vocês
perdoem se eu forço a nota, mas desejo ligar dois grandes
acontecimentos: o aniversário do nascimento de Clarice Lispector em 10
de dezembro, e o prêmio universal para o frevo, agora patrimônio
imaterial da humanidade, desde o último 5 de dezembro. Mais adiante
entenderão por quê.
Daí que
assim perdoado, como espero, acompanhem estas linhas que associam o
frevo, que já era universal sem títulos, a trechos de Restos de
Carnaval, um belo texto de Clarice Lispector. Vamos a ela.
“E
quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me
tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa
escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para
que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a
capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”,
fala Clarice.
Lembro que as crianças de subúrbio no Recife também possuíam o mesmo sentimento.
Em
frente ao Cinema Império, em Água Fria, passavam, reuniam-se meninos,
homens, piratas, colombinas, vedetes, palhaços, toureiros, zorros,
ursos, lança-perfumes, bisnagas, perfumes, mulheres, promessas de corpos
nus que não podíamos pegar. Havia um suor bom onde se colavam os
confetes, umas peles abrasadas, uns sovacos mal raspados que eram em si
mesmos fetiches de bocetas nuas, todos comprimidos, esbarrando-se num
fogo que desejava a tudo queimar, arder até a alma pobre da gente.
Toquem o frevo mais alto. Uma explosão de braços e pernas na dança, uma
multidão revolta, uma humanidade negra, mulata, branca, revoltada, que
se anunciava, e não sabíamos: atenção, menino, atenção, infância: “nós
passaremos”. Toquem o frevo mais alto!
Esse era
o carnaval do Recife que vi no tempo de menino. Já o carnaval de
Clarice é uma festa do mundo que se abre para ela. Abre e fecha, porque
na sua crônica há um carnaval de que ela não participava, embora muito o
desejasse.
“No
entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um
baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me
ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde
morávamos, olhando ávida os outros se divertirem”.
Aqui uma
pausa. Eu morei nesse sobrado. Morar, modo de dizer. Que diferença
entre o vivido por mim e o narrado por ela. Eu me pergunto se já na
frase de Clarice, “sobrado onde morávamos”, se não há um exagero, uma
dignificação, uma elipse, que se não mente, omite. Explico. Se o sobrado
inteiro era da sua família, então ela não era tão pobre quanto aparece
no relato e na biografia de Benjamin Moser. O mais razoável é supor que
ela e família ocupassem no sobrado apenas uns 3 cômodos, como chamamos
no Recife à divisão de espaço cuja unidade é a medida de um quarto
simples. Bem sei, de viva morada, quando morei no “sobrado da infância
de Clarice Lispector”. Em 1978, o sobrado era pensão, um pardieiro de
paredes úmidas, e muitos quartos. Em 78 eu não sabia que ali havia sido
a casa da infância de Clarice Lispector. Para mim, até hoje, ele é
soturno e irrespirável. Entrar nele, lembro bem, era entrar como os
condenados que depois de um dia fora voltam à prisão. O lugar era
segregador e irrespirável.
Nas
fotos da web, o “sobrado da infância de Clarice Lispector” aparece
pintadinho e recuperado para ser a casa da escritora. Nas imagens,
perdeu seu aspecto medonho de pensão de reclusos, virou casa agradável,
como pode ser visto aqui. Mas
aqui, mais uma vez, há um cenário pintado. Para escrever estas linhas,
ontem voltei ao sobrado de número 387, na praça Maciel Pinheiro. A
placa, onde seria lido algo como “aqui viveu a escritora Clarice
Lispector na infância”, está escura, com letras apagadas, quase
ilegíveis. Um dos mendigos que dormem na calçada, ao me ver em
dificuldade para ler a inscrição no alto, gritou: “É 387”.
Na entrada
do que foi a pensão e a casa de Clarice, que ficava ao lado, na Travessa
do Veras, por onde eu entrava furtivo, agora está bloqueada por
espessa parede com cimento exposto. Mas voltemos à crônica de Clarice.
“No
entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um
baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me
ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde
morávamos, olhando ávida os outros se divertirem”.
Repito o
trecho para observar que o carnaval onde os outros se divertiam, quando
passavam pelos olhos de Clarice, era o da multidão, da gente possuída
pelo frevo com o diabo no couro. A realidade humana que era, que foi,
que é, ganha perenidade na música e na história.
Imaginem
uma multidão, seis, oito, dez mil pessoas, imaginem toda essa gente
comprimida em um espaço estreito. Imaginem agora que de repente toda
essa gente enlouquece, e quer correr, mas não sai do lugar, porque está
cercada por todos os lados. Imaginem que essa gente, cada homem, cada
mulher, cada menino, todos querem ainda assim abrir espaço à sua volta, e
todos querem isto a um só tempo. Imaginem essa gente estimulada,
embriagada de álcool e alegria. Imaginem agora essa gente excitada por
uma música que não se ouve só com os ouvidos, porque ela se ouve com os
braços, as mãos, a boca, os pés. Imaginem, portanto, uma grande massa em
fúria. Raiva, alegria e libertação sob ritmo. Isto é o passo, ao som de
Vassourinhas em Pernambuco.
Essa era a gente antes do estouro do frevo que passava em frente à porta do sobrado onde a menina Clarice vivia e morava.
“Duas
coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para
durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se
tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro
ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal
modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as
máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha
de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também
fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um
mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável
com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes
encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os
mascarados, pois, era essencial para mim”
O texto é
uma crônica bela, cuja beleza não se extrai do mundo externo, mas do
que a escritora traduz da sua exclusão desse mundo, que gira em febre
violenta nos três dias de carnaval. Na biografia Clarice, de Benjamin
Moser, assim aparece a última vez em que Clarice Lispector voltou ao
Recife da sua infância:
“Em 30
de maio de 1976, Clarice e Olga chegaram ao Recife… Ela se hospedou no
Hotel São Domingos, na mesma praça Maciel Pinheiro, a pletzele
(pracinha) onde passara a infância. A velha casa, em cuja sacada a
paralisada Mania (mãe de Clarice) contemplava o mundo em seus últimos
dias, e que a família tivera de abandonar por temor de que desmoronasse,
seguia desafiando a gravidade. ‘O sobrado só mudou a cor’, disse
Clarice. Ela se sentou nos bancos da praça e ficou ouvindo, arrebatada, o
dialeto pernambucano característico dos vendedores de frutas”.
Como
relacionar agora, nesse clima de Chopin, o carnaval de Clarice com a
felicidade imensa do reconhecimento universal do frevo nestes dias mais
recentes? Se o leitor permite um recurso do gênero deus ex machina, ligo
as duas pontas de Clarice e o frevo para concluir em três parágrafos.
O mundo
continua e a vida segue. Nós, os senhores encanecidos, com ar
respeitável, mas com um espírito de moleque, devemos saudar os nossos
filhos que pulam nas ladeiras e ruas ao som dos clarins de Momo:
“Olinda, quero cantar a ti esta canção,
Teus coqueirais, o teu sol, o teu mar,
Faz vibrar meu coração de amor
a sonhar, minha Olinda sem igual,
Salve o teu Carnaval!”
Faz vibrar meu coração de amor
a sonhar, minha Olinda sem igual,
Salve o teu Carnaval!”
Temos
agora a certeza, com algo vivo, que uma cultura não se destrói. Estamos
todos bestas, cantarolando com aparência de idiotas, que nunca perdemos,
“você diz que ela é bela, ela é bela, sim, senhor. Porém poderia ser
mais bela, se ela tivesse meu amor. Bela é toda a natureza, bela é tudo
que é belo”. Nem sequer sonhávamos com esse último 5 de dezembro, dia em
que se declarou para os quatro cantos que o Frevo é Patrimônio
Imaterial da Humanidade. Assim mesmo em maiúsculas. Bela é tudo que é
belo, como na canção de Capiba. O frevo venceu e Clarice é bela,
concluo.
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