A alegria dos índios Suruí que se definem como um “povo cantante” – pelo antigo costume de cantar durante as mais diversas tarefas da tribo como plantar, colher e caçar – esconde as marcas do sofrimento que eles vivenciaram durante o período da repressão do regime militar na região do Araguaia.
Por Mariana Viel, de Marabá (PA), especial para o Vermelho
Contar a história do sofrimento do povo Suruí durante o período da repressão militar no sul do Pará não significa fazer apenas o relato das experiências compartilhadas por eles no passado. É preciso antes de tudo compreender a desconfiança e o medo que ainda hoje estão nos olhares e nas palavras daqueles que foram obrigados a entrar na mata para caçar os guerrilheiros do Araguaia. Muitos deles não conseguem detalhar os acontecimentos em função da gravidade da violência.
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Existem relatos que indicam que além do trabalho forçado de mateiros (guias da mata), eles foram obrigados a ajudar a carregar e até mesmo mutilar corpos de guerrilheiros assassinados pelo Exército. O abuso sexual de mulheres da aldeia também faz parte dessa chocante página da história dos Suruí.
“Meu tio conta que eles eram obrigados a cortar as cabeças das pessoas que o Exército matava, caso contrário eles apanhavam”, revela Cleoton de Oliveira Suruí, filho do ex-cacique Tybacu – da aldeida Itahy.
Divididos desde 2004 em duas aldeias – a Sororó (composta por cerca de 80 famílias) e a Itahy (que possui nove grupos familiares) – os Suruí são um povo originalmente nômade que cultivava pequenos roçados de plantação e viviam às margens do Rio Araguaia. Por volta de 1974, o Exército tentou montar uma base militar dentro da aldeia e proibiu o povo Suruí de caçar e de praticar alguns de seus tradicionais rituais.
Uma das maiores reivindicações dos índios é questão da identidade cultural da nação. Cleoton – que atualmente estuda agroecologia no Instituto Federal de Marabá, com outros quatro índios das aldeias Sororó e Itahy – conta que a questão da Guerrilha do Araguaia é um tema que envolve sentimentos e lembranças muito dolorosas para seu povo. “Até pouco tempo atrás era muito difícil você conseguir uma lembrança da guerrilha aqui dentro da aldeia. Cada vez que se fala sobre esse assunto eles são novamente machucados e toda aquela lembrança do que eles viveram volta. Eles contam para a gente que a questão da guerrilha mexeu muito com a nossa perda cultural”.
Cleoton se recorda que o primeiro contato de membros de sua aldeia com camarás (homens brancos) interessados nos relatos dos Suruí do período ditadura militar aconteceu em 2009, através do representante do PCdoB no Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) e membro do Comitê Paraense pela Memória e Verdade, Paulo Fonteles Filho. Um tempo depois, vieram os militares – possivelmente à procura das ossadas de militantes do PCdoB que lutaram na Guerrilha do Araguaia.
Ele diz que chegou a enfrentar um coronel do Exército que tentou obrigar seu pai, na época o cacique da aldeia Itahy, a dar detalhes e informações sobre a possível localização de corpos dos guerrilheiros desaparecidos. “Eu falei com ele que a ditadura já havia acabado há muito tempo. Hoje você não pode mais vir aqui com aquela expressão que você usava naquela época. Você tem que saber se ele pode, se ele quer e se isso não vai violar nada. Quais são as condições que serão dadas para ele fazer isso. Não adianta mais quer vir intimidando o nosso povo porque hoje nós temos conhecimento. Então eu pedi licença para o meu pai que era o cacique da aldeia na época e disse que não queria mais eles na nossa aldeia”.
O estudante indígena diz que não pode confirmar se os militares conseguiram ou não localizar alguma ossada, mas afirma que nos limites das terras da aldeia Itahy foram marcados dois locais com cimento.
As aldeias possuem atualmente 20 estudantes da Universidade Estadual do Pará (Uepa) e outros cinco do Instituto Federal de Marabá. Nesta sexta-feira (16) eles oficializaram a criação da primeira Comissão da Verdade que fará o registro oficial do sofrimento e dos impactos da ditadura brasileira na vida de uma comunidade indígena no país.
A intenção é de que os próprios filhos, netos e sobrinhos dos índios escrevam os relatos dos mais velhos sobre as torturas – numa tentativa de assegurar a fidelidade das histórias e também garantir que eles se sintam confortáveis para compartilhar as experiências ainda guardadas com tanta dor e angústia.
Atualmente 14 indígenas reivindicam indenizações junto ao Estado brasileiro, mas as informações são de que o número de pessoas do povo Suruí afetadas é ainda maior.
“Estamos lutando por essas indenizações não para repor as coisas que foram perdidas, porque a questão da nossa cultura que foi violada, esse dinheiro não trazer de volta. A dor esse dinheiro também não vai curar. O que ele vai fazer é amenizar a vida dos mais velhos que vão poder ter um pouco mais de conforto”, explica Cleoton.
O ex-cacique Tiwacu – pai de Cleoton – lembra o grande sofrimento que eles passaram durante o período que os militares se instalaram área dos Suruí.
Ele tinha apenas 21 anos quando foi obrigado a colaborar com o Exército e relata a grande quantidade de aviões que desciam nas proximidades da aldeia e o intenso barulho dos tiros disparados pelos militares.
Lembranças que ainda hoje perturbam os membros mais velhos da aldeia. Ele se recorda ainda de ter mantido alguns contatos com o guerrilheiro comunista Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, que trocava pele de animais na região de São Geraldo e São Domingos do Araguaia.
“Antigamente a gente vivia só da agricultura, na cantoria, tradição, festas e essas coisas assim, mas por causa da guerrilha nós perdemos muito da nossa cultura. Nem sair pra caçar eles deixavam a gente. Diziam que a gente tinha que ficar só por aqui mesmo. Até abusar das índias eles chegaram a abusar”.
Segundo Cleoton, os mais velhos diziam que os “terroristas” – como eram chamados pelos militares os heróis do Araguaia – eram pessoas boas que chegavam a ajudar os índios e camponeses que passavam por enfermidades.
Neste sábado (17), será realizada uma audiência pública a partir das 15 horas, na Câmara Municipal de Marabá, irá registrar os relatos de indígenas e camponeses da região durante o período a repressão do Exército na região. Calcula-se que cerca de 350 camponeses foram mortos por agentes da ditadura. Os relatos devem contribuir ainda para a localização das ossadas de 65 guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil desaparecidos na região durante o período.
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