Por Dênis de Moraes - Blog da Boitempo
Um dos mais significativos fundamentos ético-políticos do escritor Graciliano Ramos foi reivindicar uma verdadeira transformação social no país, sem em nenhum instante negociar a substância estética da revelação crítica da realidade em nome de um engajamento acrítico. Sempre recusou a tutela ideológica sobre a imaginação literária, impedindo que qualquer “linha justa” lhe indicasse as ferramentas do ofício ou o guiasse para a cilada do panfletarismo.
Foi assim, particularmente, na fase de incompreensões e dissabores dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual se filiara em 18 de agosto de 1945, a convite do secretário-geral, Luiz Carlos Prestes, em função das controvérsias sobre o chamado “realismo socialista”. No contexto de alinhamentos automáticos da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética, a partir de 1947 Moscou impôs aos PCs aliados o realismo socialista como paradigma estético. A literatura e as artes deveriam exercer papel exclusivamente pedagógico, difundindo os esforços para a construção de um “mundo novo” e de “um homem novo” nos países socialistas. Em lugar da cultura burguesa “decadente e degenerada”, escritores e artistas se empenhariam em edificar a “cultura proletária”, única capaz, segundo o Kremlin, de desmistificar os valores morais da classe dominante e sustentar o caráter revolucionário da obra de arte. As vanguardas estéticas passaram a ser condenadas como “antissocialistas” e “contrarrevolucionárias”. Em suma, a “arte proletária e revolucionária” deveria concorrer para o triunfo do socialismo, enaltecendo os feitos do regime e da classe operária e cultuando a personalidade de Stalin (Moraes, 2012, p. 249-251).
O stalinismo cultural – assimilado mecanicamente por partidos comunistas aliados, sem se levarem em conta as peculiaridades de cada país – menosprezava as especificidades dos trabalhos literário e artístico, que exigem liberdade de invenção acima de imperativos ideológicos, embora possa refleti-los. A visão de que a produção estética precisava estar atrelada ao ideário oficial reduzia o poder de fogo do criador. O intelectual, por mais solidário que fosse às lutas sociais e às causas dos oprimidos, não poderia sufocar suas inquietações diante do mundo, nem aceitar ser mero porta-voz de discursos impostos de cima para baixo. Na essência, o dilema da intelectualidade comunista era conseguir situar-se na zona de interseção entre o pensamento livre, as atitudes válidas de contestação e as injunções políticas mais imediatas (Moraes, 1994).
Sem externar publicamente as suas objeções, só conhecidas por interlocutores de confiança, Graciliano ousou dissentir das prédicas adotadas pela cúpula do PCB. E o fez por rigorosa coerência: grande artista da palavra, não hesitou em defender a integridade e a autonomia de seus escritos. Até morrer, aos 60 anos, em 20 de março de 1953, Graciliano caminhou na corda bamba entre a fidelidade filosófica ao socialismo e a discordância em relação à política cultural do partido. Foi acusado, absurdamente, de ceder a “desvios burgueses” na elaboração de seus romances, deixando de exaltar “feitos revolucionários”. Os detratores não alcançavam – ou fingiam não alcançar – o sentido transcendente de sua obra: o testemunho pungente sobre o mundo social. Um testemunho sem deliberada intenção militante, mas capaz de dissecar conflitos individuais e coletivos, de denunciar uma sociedade elitista e egoísta, que precisa ser superada na longa luta anticapitalista (Moraes, 2012, p. 252).
Por mais alinhados que sejam aos oprimidos, escritores e artistas não podem sufocar suas inquietações, nem se conformar que o partidarismo lhes indique os instrumentos de ação criativa. A rarefação da sensibilidade em nome do engajamento sem ponderações implica aprisionar-se nas paredes ocas do dogmatismo. Os postulados dogmáticos baseiam-se em pontos de vista que, em certa época, constituíram a base espiritual para a existência, mas que, em outro contexto, ofuscam a percepção dos movimentos de renovação do ambiente sociopolítico (Goldmann, 1973, p. 33). A criação cultural passa a ser condicionada por teoremas que subestimam as variações dos processos históricos, atravessados por linhas de continuidade e descontinuidade que põem em xeque o sonho intangível de uma vida linear.
Para que a dialética prevaleça na elaboração intelectual, é essencial afugentar a ameaça de subtração das ideias em nome do jogo das conveniências, como também sedimentar a liberdade que assegura a explicitação do novo.
Georg Lukács sustenta que a arte como forma de conhecimento não pode ser reduzida a um cálculo político efêmero. No ensaio “Arte livre ou arte dirigida”, de 1947, o filósofo marxista húngaro diz que o estilo de um autor não é modulado por decisões impostas de fora, e sim pela evolução do próprio artista e de seu modo de pensar. Como o mundo está em constante ebulição, os horizontes também se modificam, interferindo na forma e no conteúdo das obras de arte. Contudo, essas transformações devem ser voluntárias, fundadas em convicções profundas, e não guiadas por princípios burocráticos que sufocam “as possibilidades do futuro ainda em germe” (Lukács, 1968b, p. 274-275).
A resistência à racionalidade dominadora nada tem a ver com apatia ou deserção frente ao poder da hora. O escritor consciente não se aparta da complexidade de sua época. Como não pensar em um diálogo com Lukács? Em seu entender, era sintomático o fato de Marx sempre se exprimir com ironia a respeito da obra de arte que se esgota na tese política. “A ironia se torna especialmente áspera quando [Marx] verifica que o escritor, para demonstrar a verdade de qualquer proposição ou justificação, violenta a realidade objetiva, deformando-a”. Para Lukács, nenhum artista pode permanecer indiferente aos grandes problemas do progresso humano, nem deixar de manifestar diante deles, “se quer atingir um profundo realismo”. Acima das imposições, deve prevalecer “a honestidade estética incorruptível, isenta de qualquer vaidade, própria dos escritores e artistas verdadeiramente grandes” (Lukács, 1968a, p. 38-40).
Penso que o equilíbrio buscado por Graciliano se deve ao compromisso superior com os valores humanistas. Ele coloca-se do ponto de vista dos grupos sociais marginalizados; grupos que sinalizavam o anseio latente de romper o cerco das exclusões. Em seu horizonte ficcional, projetam-se vozes que clamam pelo alargamento do nível de consciência da totalidade concreta da sociedade, em particular dos setores subalternos sobre os quais recaem as consequências deletérias do capitalismo. Carlos Nelson Coutinho (2000, p. 159 e 216) observa, lucidamente, que as visões de Graciliano se baseiam em uma temporalidade social e histórica determinada, com suas possibilidades objetivas e seus campos de tensão. Ao mesmo tempo que descarta teses e concepções apriorísticas, o romancista funda a coerência interna de sua criação ao perceber os reflexos do real sobre as relações sociais, correlacionando o universal e o particular, os dramas sociais e as dores íntimas, a preocupação ética e a grandeza moral.
Graciliano repelia o esteticismo desprovido de significação humana, com sensibilidade adicional para entender que, numa obra literária digna deste nome, forma e conteúdo evidenciam as tomadas de posição artísticas e ideológicas do autor — posições definidas pelas distinções que as unem e as separam no espaço da criação.
Tal entendimento corresponde à perspectiva de Jean-Paul Sartre (1993, p. 20-21), para quem a função do intelectual é despertar consciências, impedindo que os homens se alienem ou se resignem diante das interrogações à sua volta: “O escritor ‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar.”
Em seus romances, contos, crônicas e memórias, Graciliano afrontou as mazelas de uma sociedade marcadamente desigual sem recorrer ao ouro falso dos slogans e das fórmulas propagandísticas. “O artista deve procurar dizer a verdade. Não a grande verdade, naturalmente. Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas”, esclarecia. Ele precisou apenas de folhas de papel e frases enxutas para lançar um potente facho de luz sobre os contornos precários de um mundo alienado e injusto.
Ao solidarizar-se com as vidas degradadas por discriminações e pelas estruturas espoliadoras do trabalho, Graciliano está nos propondo que o resgate da dignidade depende da nossa capacidade de intervir na cena pública da política com ímpeto decididamente transformador. Para isso, concebe uma arte irredutível à retórica, a salvo de ilusões ingênuas, mas comprometida organicamente com as batalhas das ideias pela emancipação, sendo capaz de vislumbrar a superação dialética das realidades adversas e hostis, com esperança ativa na construção de um outro mundo.
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