PASSEIO SOCRÁTICO (Dagmar Vulpi)
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala
de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados,
ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam
tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um
outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos
dois modelos produz felicidade?'
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:
'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. Comemorei:
'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'.
'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...'. 'Que tanta
coisa?', perguntei... . 'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina',
e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando:
'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'
Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados.
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis
livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de
ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me
preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho
ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma
maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da
subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
Hoje, a
palavra é virtualidade. Tudo é virtual... Trancado em seu quarto, em
Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma
preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é
virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos
virtuais. E somos também eticamente virtuais...
A palavra hoje é
'entretenimento' . Domingo, então, é o dia nacional da imbecilização
coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no
palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não
consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o
resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, calçar este
tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O
problema é que, em geral, não se chega! Quem se desenvolve de tal
maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios.
Quem resiste, aumenta a neurose.
O grande desafio é começar a ver o
quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante,
neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor.. Aliás, para uma
boa saúde mental, três requisitos são indispensáveis: amizades,
auto-estima, ausência de estresse.
Há uma lógica religiosa no
consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status
construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping
center. É curioso: a maioria dos shoppings centers tem linhas
arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de
qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali
dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de
rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som
do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista.
Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis
objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode
comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque
pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no
purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no
inferno.... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna,
irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc
Donalds...
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta
das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático. Diante de seus
olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava
de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando
vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: "Estou apenas
observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz!"
QUEM NÃO LÊ, MAL FALA, MAL OUVE E MAL VÊ
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