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Terça, 11 de Outubro de 2011 |
A luz da luminária entra de esguelha pela fresta
entreaberta da porta, percorre silenciosamente o chão entre os livros e
peças de roupas que se misturam, sobe pela lateral da cama e alcança o
seu último ponto de luz nas mãos segurando os óculos de armação grossa e
cor forte. A janela mantinha a abertura suficiente para os sopros
noturnos. Muito embora fosse uma noite de primavera, o clima e o tempo
pareciam às vezes quase tão esquizofrênicos quanto a correria daquela
paulicéia sempre e continuamente tão desvairada.
2h:53, e lá de baixo um som estridente ecoa até o 6º
andar, entrando com os ventos da madrugada janela adentro do antigo
prédio na Liberdade. Movimentou-se na cama, como quem de longe, de
dentro do inconsciente, sente o barulho, mas não o suficiente para
despertar. Talvez fosse o costume que já não mais estranhava, é que
gatos e gente de toda a espécie passavam por aquela esquina altas horas,
os gatos revirando latas, e gente se revirando – resquícios da
embriaguez; às vezes do frio das ruas que serviam de abrigo; outrora de
ânsias e dores pelos sustos que a alta noite às vezes trazia.
3h45, súbito despertou como a quem faltasse fôlego e
voltasse às pressas a si e ao corpo para sugar o ar que pairava pesado.
As mãos trêmulas perderam de vista os óculos entre os lençóis, e as
pupilas dilatadas tateavam o interruptor do abajur no canto esquerdo do
quarto. Click. Queimada. Bem havia pensado em trocar a lâmpada pela
manhã, esqueceu-se. No escuro, olhando através do breu do quarto, os
pensamentos aleatórios e arredios inevitavelmente fizeram ver os olhos
negros e profundos daquele olhar cheio de tantos vazios.
18h45, chegava em casa como de costume, depois de passar
em um simpático café na esquina com a Consolação para encerrar o
expediente como se deve. Uma considerável xícara de um expresso
devidamente forte. Respirava, len-ta-men-te, quase como em ritual para
exorcizar o dia e degustar os instantes mais peculiares que
sobressaltavam. O som da flauta que passava na rua entre os lábios de um
transeunte se misturava ao piano de dentro do café, e muito embora
fossem sons diversos, ainda mais confusos entre outros sons que chegavam
do trânsito e dos passos pra lá e pra cá, formavam-se versos melódicos
inusitados, divertia-se. Abriu o laptop, corriqueiramente, entre
notícias, devaneios e poesias.
Colocou os óculos porque a meia luz o ambiente já não
favorecia nenhuma espécie de leitura. E viu, ali, apertados entre as
notícias da página, aqueles olhos negros e profundos de um olhar
agonizante e cheio de tantos vazios. Alphonse Kenyi, 14 anos,
acorrentado em uma prisão do Sudão do Sul, na África, acusado
supostamente de fazer parte de um grupo de matadores, a espera para ser
morto na forca.
4h02, a sensação era de ter novamente o gosto do
café do fim da tarde na boca, ainda mais forte e insuportavelmente
amargo. Os trechos da matéria sobre o menino se remexiam, como se
pulassem diante dos seus olhos, quase com a mesma intensidade com que
pulou da cama e saiu de rompante em direção à cozinha. Justiça, África,
fome, café, carro, gente, rua, culturas, sede, rituais, olhos, vazios,
abismos, fome, música, moral, São Paulo, fome...
Essas palavras iam e voltavam instigantes, quase
alucinógenas, enquanto a água fervia para o chá. Sentia-se vista, olhada
por todos os cantos da casa, e em todos os cantos dela. Era como se
aqueles olhos olhassem todas as suas vulnerabilidades, e estivesse nua
diante do que não conseguia esquecer. Não achava comum que passasse pela
notícia como quem caminha pela rua e não vê, menos ainda transvê,
qualquer espécie de realidade das infinitas e paralelas que conviviam à
sua, que permeavam a sua e mesmo eram vomitadas no seu cotidiano.
O estado de insone parecia agora se transmutar em estado
de alerta, como se acordasse como nunca de um estúpido e morno estado
de encantamento, e visse todos os olhares como aqueles tão distantes
abstrata e geograficamente dela. E, no entanto, mais próximos aos seus,
como nenhum outro naquele instante.
Nada faria passar estes espasmos viscerais, feito
instintos irremediáveis de uma lucidez cortante, como se fosse um crime
absurdo o querer não mais pensar sobre tudo o que explode e expurga para
além das suas proteções, do seu espaço. Havia agora a sensação de viver
numa fenda, nos entre-lugares de tudo, e fazer parte sinestésica e
corporalmente de cada parte do outro, do lado de lá, de todas as
segundas, terceiras e inimagináveis margens que a incomodavam, não por
existirem, mas por, até então, ela não ter conseguido sentir como agora
sentiu e se sabia.
Aquele olhar trazia tantos outros, e não trazia nenhum. A
água já gritava na chaleira, num sopro agudo, não fosse o borbulhar que
fez soltar a tampa e derramou fervendo no fogão, não sairia do estado
de hipnose em que se encontrava. Como evitar humana e emocionalmente os
mais atormentados sentimentos? Um menino preso há mais de dois anos
aguardando na fila de toda a hipócrita condenação social para ser
enforcado, por uma acusação imposta a ele pelo poder local, como quem
tenta encontrar um lugar mais simples onde colocar as culpas; enquanto
assassinatos e crimes hediondos acontecem todos os dias das maneiras
mais absurdas e simbólicas.
Enquanto tentava fazer funcionar o velho isqueiro
amarelo que estava na gaveta, pensava sobre a condenação insana em que a
sociedade supõe e aponta seus marginais, perseguindo tudo que for das
minorias, do estranho, do incomum, numa matança animal do valor humano.
Inevitavelmente soltou uma risada, mais desespero do que qualquer outra
expressão, ao pensar que estes ímpetos humanos, frutos de arrogâncias
diversas, não pareciam resolver nada, e que as condenações à forca, e
todas as condenações simbólicas das nossas intolerâncias, pareciam muito
mais nos enforcar a cada dia.
E sentiu com dor, como se apertassem o seu peito, que
tudo a sua volta transformava-se dia a dia em algo muito próximo a uma
raça mutante, anaeróbica, feito bactérias com capacidade de viver sem
oxigênio, estranguladas pelas suas próprias cegueiras, e felizes, de
forma estúpida eram felizes, porque o abrir as janelas do corpo, o ter
que sair de dentro e respirar realmente doía. Mas tinha! Como era
possível não sentirem todos, e ela, até ser mirada por aqueles olhos
negros fundos, que tinha que respirar?!
Colocou a água na xícara de chá. Acendeu o cigarro com
as mãos que de agora em diante não mais seriam as mesmas, como quem toca
no inatingível e não pode mais deixar de sentir.
6h da manhã, a cidade já despertou, já iniciou sua dança
cega pela rotina amorfa. O chá estava intocado, e o cigarro havia se
transfigurado em cinzas frias sobre a mesa. Súbito e de susto veio a
náusea, e a fome, juntas como se não mais pudessem ser separadas. Correu
para o banheiro, nada. Correu então para a janela, abriu as cortinas e
todos os vidros, portas, fechaduras. Destrancou a casa e a si mesma.
Agora sim, sentia que havia vomitado toda a angústia noturna. Mas não
havia de se limpar dos restos, porque era necessário que existissem para
que ela não saísse pela porta e caminhasse pela rua ausente e
mecanicamente como fazia cotidianamente, e via ser feito em montes de
zumbis urbanos entre os sinais, prédios e os resquícios de árvores.
Passou a mão pela estante tateando as chaves do carro, deu de cara e mãos com um velho exemplar de A flor e a náusea,
Drummond, que vez ou outra gostava de ler. Sorriu, agora muito mais
calma e ironicamente mais inquieta, e as palavras que ora ou outra
sentia que perdiam qualquer pé de sentido em jornais, noticiários, e
mesmo nas conversas diárias, ganharam uma espécie de peso, e pulsavam no
livro empoeirado na estante. Saiu rua adentro como quem vai caminho
longo de desbravar o mar. Mente fluida, fluxo intenso para além do
tráfego e a ressonância da frase do poema reverberando nos passos e
gestos daquele corpo delicado, de movimento suave e agora tão forte.
Havia vomitado o tédio sobre a cidade e, feito flor de Drummond, furava
como quem rompia sobre os pés... ‘O asfalto, o tédio, o nojo e o ódio’.
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