Por Sul21
Igor NatuschDivulgados de forma inédita no Brasil há duas semanas em Porto Alegre, os cartazes da campanha ateísta, que busca combater o preconceito contra ateus, provocaram um intenso debate nas páginas do Sul21. Procurando contemplar diferentes pontos de vista sobre um tema tão polêmico, entrevistamos o presidente da Associação de Ateus e Agnósticos, Daniel Sottomaior, e agora publicamos a entrevista com o teólogo Luiz Carlos Susin, que no debate entre fé e ateísmo só veta as simplificações. “O ato de crer é, humanamente, um ato de liberdade, e isso supõe a liberdade real de não crer”, diz Susin.
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Frei capuchinho, Luiz Carlos Susin é doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e professor no programa de pós-graduação em Teologia da PUCRS. Há mais de dez anos integra a equipe editorial da Revista Internacional de Teologia Concilium, editada em sete línguas.
Em entrevista ao Sul21, Susin defende a legitimidade da campanha da associação de ateus, mas faz ponderações em relação à simplificação de algumas das mensagens divulgadas, que poderiam provocar mal entendidos, e alerta que também o ateísmo pode flertar com o fundamentalismo. “Ambos podem crescer juntos e aumentar suas porções de ódio na mesma proporção”, afirma o teólogo, por e-mail, já que se encontra em viagem ao Europa e aos Estados Unidos.
Sul21 – Porto Alegre foi a primeira cidade brasileira a divulgar outdoors de conteúdo ateísta, pedindo o fim do preconceito contra os ateus. O senhor considera legítima essa manifestação? Qual a sua primeira impressão ao ter contato com a campanha?
Luiz Carlos Susin – É importante reconhecer a legitimidade desta manifestação pública. Pessoalmente, me acostumei, exatamente como teólogo cristão, a viver em ambiente acadêmico em que o debate e o “contraditório” são importantes para todas as partes. Tenho colegas e amigos ateus, e tanto na vida prática como na reflexão da fé cristã entendo que o ateísmo é companheiro legítimo da fé. Ou seja, o ato de crer é, humanamente, um ato de liberdade, e isso supõe a liberdade real de não crer. Crer sem liberdade – crer por medo, por submissão – é fé infantil e, com o tempo, se torna “infantilizante” e até perigosa. O filósofo judeu Emmanuel Lévinas costumava lembrar que, no caminho de um monoteísmo maduro há uma estação sem Deus, vazia de fé. Ou ainda, numa paráfrase de um dos primeiros pensadores cristãos, Tertuliano (“A alma é naturalmente cristã”), ele justificava que “a alma é naturalmente ateia”, pois a fé não é uma obrigação de natureza, é mais um ato de amor, tem mais a ver com as relações eróticas – o fervor – do que com as reflexões intelectuais, embora a reflexão intelectual tenha um papel importante.
Sul21 – O senhor acredita que há, de fato, discriminação contra ateus no Brasil?
Luiz Carlos Susin – Evidentemente não posso falar por mim, não é a minha experiência, mas acolho como verdadeira e legítima a reclamação. Aprendi com as mulheres, com os negros, com os gays, com os índios, que as minorias ou os que são considerados como minoria são vulneráveis à discriminação e à formação de vítimas expiatórias das maiorias. Penso que quase todos somos, em algum ponto, também minoria, além de sermos, para as outras minorias, parte da maioria. Isso nos ajuda a examinarmos esta questão desde as duas posições e a sermos sensíveis às minorias que não somos nós. Os diferentes de nós que são uma minoria estranha à nossa experiência podem aparecer como ameaça, como gente exótica e portadora de algum mal. Isso é antropológico. Em relação aos ateus, isso é ainda mais complicado, porque normalmente os que têm fé em Deus consideram Deus a fonte do bem, da inspiração ética. Daí a pensar os “sem Deus” como alguém sem ética é um passo em falso: assim como há muitas formas de crer e há religiosos que são muito maus, há também muitas formas de ser ateu, e há ateus que são muito éticos. E de ateu todos temos um pouco: a fé que não se expõe à “não fé” e não reconhece suas áreas de ateísmo, é uma acomodação criticável. Os ateus, como todos os que são diferentes, integram uma lição importante para a sociedade.
Sul21 – Alguns dos outdoors colocam uma imagem de Charles Chaplin (ateu) ao lado de Adolf Hitler (que acreditava em Deus), como forma de desconstruir um suposto senso comum de que ateus são pessoas más. Na opinião deles, era importante associar a fé com uma figura negativa (Hitler), para fazer oposição a uma outra ideia: de que a bondade é um sinal de que as pessoas têm “Deus no coração”. Como o senhor recebe esse argumento e como se sente ao ver a imagem do outdoor?
Luiz Carlos Susin – Esse outdoor é um bom exemplo da ambiguidade e da complexidade tanto da fé como do ateísmo. Algo na religião de Hitler andou muito mal. Por outro lado, muito da compaixão que Chaplin revela em seus filmes coincide com as melhores lições de Jesus, e, portanto, tanto a religião como o ateísmo são algo relativo. Mas como esses outdoors não podem ser uma conferência ou um debate em uma sala da universidade, ao simplificar posturas muito complexas, abrem espaço para muitos mal-entendidos, e por isso é bem possível que os efeitos colaterais negativos sejam maiores do que as intenções dos autores. A religião não é sem consequência, ela molda o caráter, inclusive negativamente quando é mal compreendida e mal praticada. O ateísmo também molda o caráter e influencia as relações, pois há ateísmos mais respeitosos e há ateísmos militantes que se tornam tão agressivos como o que pretendem combater.
Sul21 – Um dos anúncios publicados pela ATEA diz: “A fé não dá respostas. Apenas impede as perguntas”.
Luiz Carlos Susin – Não é uma frase justa, embora historicamente tenha suas razões. Mas dita assim, de forma simplória e universal, desconhece elementos históricos tão importantes quanto. E por isso se torna injusta, merece um debate cuidadoso. Houve e há grandes cientistas que vivem uma fé muito viva, e conheço alguns deles, li outros. Assim como li uma porção de cientistas ateus. A tendência desse tipo de ateísmo é colocar o contraditório entre fé e razão ou fé e ciência. A fé é antes de tudo uma postura existencial, que, como disse antes, tem a ver com a relação amorosa, com o “fervor”, uma forma de “eros religioso”. Um ato de adoração ao amanhecer, que é uma experiência existencial, uma prática anterior a qualquer argumentação, resiste a mil argumentos contrários da razão ao longo do dia. Mas uma fé verdadeira busca compreender também. Quando se fecha à razão, torna-se fundamentalista, fanática e potencialmente agressiva. Costumo comparar a experiência da fé a uma energia atômica: pode ser altamente eletrizante, mas pode ser catastrófica. Nesse sentido, a razão e a ciência se tornam um crivo e uma companhia importante. Os grandes momentos da teologia cristã coincidem com a fé que pergunta e a razão que reconhece a razoabilidade da fé. Por isso a frase do outdoor não é justa, e a simplificação pode se virar contra os seus autores.
Sul21 – O presidente da ATEA, em entrevista ao Sul21, associou religião e o progresso econômico e social de determinados países. Segundo ele, países de esmagadora maioria teísta, em especial na África e na América do Sul, apresentam os piores indicativos, enquanto regiões com maior percentual de ateus, como a Europa, oferecem melhores condições de vida para a população. É uma comparação válida, na sua opinião?
Luiz Carlos Susin – A Europa ocidental é mais desenvolvida porque se adonou da América do Sul e da África como quintal de escravidão da mão de obra e de recursos. Tornaram-se as metrópoles porque colonizaram o resto do mundo e acumularam ganâncias. A partir da Segunda Guerra, isso levou a Europa a um envergonhamento de sua incoerência colocada a nu. Essa nudez virou ateísmo. Como vê, não se pode dar respostas simples a questões muito complexas. Toda resposta simples, toda relação simples de causa e efeito, é inadequada e se torna injusta. Inclusive porque há diversas posições na relação entre essas regiões do mundo e o cristianismo ou o monoteísmo. Os mais otimistas analisam a modernidade como consequência do cristianismo, outros como secularização do cristianismo, e outros como ruptura. Provavelmente haja elementos dos três níveis, mas deve-se incluir aí também o judaísmo e o islamismo, porque muito da modernidade foi trazido à Europa por muçulmanos e buscado no Oriente. Quanto aos indicativos, se entendi bem, são de ordem econômica. Deviam-se buscar também outros indicativos, alguns muito difíceis, como os de felicidade por exemplo.
Sul21 – A fé é importante para a nossa sociedade? Em que sentido?
Luiz Carlos Susin – A melhor sociedade para se viver com respeito e justiça é a sociedade com um Estado secular, é o que viemos aprendendo com o tempo. E nisso, em tese, Bento XVI, o Papa atual, concorda com os ateus. Isso não significa um Estado que professe ateísmo, violentando a consciência e a manifestação pública, sempre que pacífica e respeitosa, da população que tem fé. Por isso o Estado deve tutelar a liberdade de expressão de ateus e religiosos de diferentes credos. Creio que nisso concordamos facilmente. Mas em termos práticos, num país como o Brasil, com maioria cristã e, sobretudo, católica, com uma história arraigada de expressões católicas, o mais importante é perguntarmos sobre o que a fé pode contribuir para uma sociedade com mais justiça e oportunidade para todos, já que a fé é uma grande energia e uma fonte de inspiração. Habermas, dum ponto de vista inteiramente filosófico e laico, em diálogo com Ratzinger, acredita que uma sociedade sólida se constitui de todas as forças que a inspiram, sem discriminar grupos.
Sul21 – O senhor está indo para os Estados Unidos nos próximos dias. Um dos principais debates entre ateus e teístas nos Estados Unidos é sobre o ensino criacionista em alguns Estados, que coloca a criação do mundo por meio de Adão e Eva no mesmo patamar da teoria evolucionista de Darwin. Não é um caso onde a religião tenta, de certo modo, deslegitimar a ciência – o que acaba provocando uma reação afirmativa em sentido contrário, com a comunidade científica confrontando a fé?
Luiz Carlos Susin – Claro, concordo com a afirmação que está em sua pergunta. Há uma mistura lamentável de linguagens e de métodos de conhecimento. O conhecimento existencial da fé, que pode ser narrado através de uma literatura simbólica, não é um conhecimento empírico, científico. E o conhecimento científico não pode pretender coincidir com a verdade, como se somente a ciência pudesse dizer toda a verdade. A verdade do amor humano, de nossas origens num mistério de graça, não é captável em laboratório. Mas querer substituir a ciência em sua neutralidade religiosa, ou seja, em seu “ateísmo metodológico”, é uma confusão que provém de uma fé insegura e imatura, que se torna um fundamentalismo agressivo e que acaba gerando malefícios. Confunde aula de ciência com aula de religião, e estraga ambas. Talvez um pouco da militância um tanto messiânica de alguns ateus provenha da inconformidade com esta situação. Os Estados Unidos se tornaram um laboratório importante de debate. Já na Europa, muito do ateísmo passa primeiro pelo anticlericalismo diante das pretensões do velho poder eclesiástico.
Sul21 – Como o senhor explica o aparente crescimento do ateísmo na sociedade contemporânea? O senhor concorda com a tese de que, ao combater o fundamentalismo religioso, o ateísmo também se converte num fundamentalismo?
Luiz Carlos Susin – Não necessariamente. Mas o ateísmo corre o risco de se tornar o irmão gêmeo do fundamentalismo, ambos podem crescer juntos e aumentar suas porções de ódio na mesma proporção. Algumas polarizações, por exemplo na Espanha, parecem ir nessa direção. Mas, como já disse, o ateísmo é uma fase necessária também para a fé, e por isso não vejo primeiramente como um fundamentalismo mas como uma libertação e uma nova forma de busca. Só o ateísmo contente consigo mesmo se torna fundamentalismo, como a fé autosatisfeita.
Sul21 – A religiosidade no mundo contemporâneo deve se tornar mais um modo de ver o mundo do que efetivamente uma crença?
Luiz Carlos Susin – Como há uma diversidade cultural e antropológica muito grande na prática de crenças, há também visões de mundo muito diferentes, e isso é enriquecedor. A própria imagem do que seja o divino, ou “Deus”, ou as múltiplas manifestações divinas narradas nas diferentes crenças, pode ser algo muito estimulante. Como cristão, devo confessar que, se Deus em si mesmo é absolutamente sem nome e sem imagem, como também confessam judeus e muçulmanos ou, de outra forma, hindus e budistas, ele se tornou tão simples e humano na pessoa de Jesus, que somente na simplicidade das relações de carne e osso, nas relações amorosas com as pessoas mais frágeis, é possível um caminho aberto para Deus. Historicamente o cristianismo ficou muito pesado ao se institucionalizar com o império romano e com a filosofia grega. Essa “desinstitucionalização” de muita religiosidade mas sem uma Igreja monolítica é uma passagem necessária para um cristianismo mais maduro, a meu ver. Mas toda mudança, no meio do caminho, é uma situação muito confusa.
Sul21 – É possível que ciência e fé andem lado a lado? Como?
Luiz Carlos Susin – Não só é possível, mas é muito importante, e, para a fé, é essencial em seu crescimento. A ciência ajudou a esclarecer que a fé não é o lugar de explicação da realidade, mas o lugar do sentido último da realidade, acolhido na liberdade. Há momentos históricos de truculência entre fé e razão – desde os intelectuais romanos que acusavam a fé cristã de ser filosoficamente e politicamente grosseira, até a as ciências modernas que acusam o conhecimento religioso de ser um conhecimento sem objeto, portanto uma fantasia infantil. Mas há momentos de grande confluência, como a dos diferentes olhares sobre a realidade que se aceitam e se estimulam mutuamente, em Tomás de Aquino, ou as diferentes intencionalidades do sujeito. O mesmo sujeito pode ser ao mesmo tempo um cientista examinando as pétalas da flor, um poeta cantando a beleza da flor e um místico que louva o mistério de um criador pela graciosidade da flor.
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