Não sei por que, toda vez que penso nas imposturas e nos impostores me vem à cabeça a imagem daquele deck molhado, das algemas, do calor, da chuva fina e irritante de um janeiro. Há fatos na vida que jamais se esquecem e que nos perseguem para sempre. Talvez, as histórias tenebrosas de fantasmas falem de fato disto. Refiram-se ao que não podemos abandonar mesmo passados trinta, quarenta anos, aquilo que nos atormentou e continua retornando como um pesadelo. Um sonho, sim, um sonho mau, algo que ocorreu e nos catapultou para o presente. Não há como apagar e fingir que não se passou, a não ser que aceitemos as razões e as práticas dos impostores.
De acordo com o que eles pensam, construir a impostura é quase uma obrigação. Eles a fazem com tal denodo que, aos olhos de outros, ela passa com algo insofismável, uma verdade a quem todos devem reverenciar. É lógico que estes são os impostores hors concours, os que já ganharam todas as medalhas e medalhões de que falava Machado. Existem os aprendizes que nunca chegam lá e, ainda, os que gostariam de ser, mas não conseguem sequer se aproximar do desempenho dos que querem aprender. A gradação das imposturas é proporcional às mediocridades de seus autores e atores.
Um dos impostores que conheci é uma figura surreal. Se fosse possível retornar no passado, olhando-se para ele, sem ter tido qualquer contato anterior, ver-se-ia que havia algo estranho com o resultado final da composição de seu personagem. Ele não era alto e nem baixo, nem branco ocidental e nem negro brasileiro. Tratava-se de um moreno, tal como isto é entendido no país. Na verdade, um afro-europeu-indígena brasileiro com todas as nuanças que, como na maioria de nós, indicam o resultado histórico-biológico da miscigenação.
Seu fenótipo bastante comum, hegemônico no Brasil, tem pouco a ver com sua gestualidade. O problema é que esta era construída na contramão do que ele realmente significava. Em tempo, esta figura representava um papel. Vamos, com cuidado, porque, seguramente, cada um de nós também representava, sendo personagens do mesmo contexto! Sem esquecer, que há impostores de todas as cores, por razões óbvias, os mais brancos costumam praticar mais imposturas do que os de outras etnias. O padrão de tal comportamento é masculino, entretanto, nada impede que se encontrem mulheres exercendo o mesmo papel.
O problema é que quando me lembro deste impostor específico, recordo-me de tantos outros, tão diferentes e, absurdamente, tão semelhantes em gênero, número e grau. O que me obriga a escrever este texto não é maior ou menor dos que infestaram a República e que antes poluíam a paisagem do Império. Aliás, eles vagam por aí, de há muito, como o casaco de Gogol. São meio fantasmagóricos porque nem sempre se percebe o que realmente são. Eles têm nome, profissão e, normalmente, são muito conhecidos. Adoram aparecer, não aceitam o anonimato da maioria dos demais mortais. Querem que os contornos de seus corpos e gestos, inclusive orais, sejam mantidos na eternidade. Imaginam-se como entes superiores e destinados a se tornar exemplos e a ser reconhecidos por todos.
Os impostores não podem ser pobres em demasia. Precisam de algum dinheiro, para construírem seus personagens. Suas imposturas precisam de eco social, logo, só podem existir, havendo a demanda dos que querem ou precisam ser enganados. Dificilmente, são ricos de tradição. A riqueza é um monstro de duas cabeças. Numa, ela ostenta sua verdade nua e crua, só existe a riqueza, acompanhada da miséria e da mais violenta exploração do homem pelo homem. Na outra, ela é necessariamente uma impostura. Quando se tenta justificá-la, esbarra-se sempre no rio de mentiras que precisam ser contadas, tal como se faz com o vil metal. Os ricos impostores, normalmente, são os que jamais conseguiram esconder bem o modo de vida que resultou em tanto dinheiro.
O meu personagem não é rico, nem pobre. Aliás, detesta suas origens humildes, e faz o que pode para camuflá-las. Vive bem, mas gostaria de ter muito mais. Não mede esforços para chegar ao topo e dizer que venceu por efeito de sua competência. Bom, sabe-se que isto jamais será verdadeiro, mas, ele acredita e é o que basta para o seu ego. O bom impostor tem de ser crédulo na sua impostura. Se tiver dúvida, o disfarce pode cair e deixá-lo em maus lençóis. O seu comportamento precisa ser inabalável e ele terá sempre a resposta para qualquer questionamento.
Não sei por onde anda o meu impostor. Se estiver vivo, pelo tempo passado, já deve estar recolhido a sua insignificância pessoal. Nesta hipótese, será que ele recorda do que viveu naquela época? Será que, convenientemente, esqueceu de tudo? Duvido, eles não esquecem, o esforço da impostura demanda o de memória. O seu mundo precisa ser absolutamente arrumado, limpo e podado de qualquer coisa inconveniente. O que sei é que ele, como havia previsto, não deve ter chegado muito longe. Afinal, para o Brasil ele era negro.
Por aqui, ainda não gostam de afro-brasileiros na posição de maior comando. Mesmo que não sejam absolutamente negros. Sua impostura fundamental consistia em reafirmar uma ordem que o excluía, também. Tal como ele sabia e dizia, na mesma época. Obviamente, não tirava disso qualquer conclusão mais ousada. Um bom impostor é disciplinado, agüenta o tranco e não reclama, esperando sempre as sobras que irá sugar. Mesmo querendo ser o maior, ele aceita ficar no meio da estrada, pois conhece o seu verdadeiro lugar, que é determinado por alguém de maior poder. Imagine-se, no Brasil, um presidente negro! Agora, se pode falar que isto é coisa de americano ...
O meu impostor não tinha muita coisa especial. Seguiu o riscado de suas escolhas, fazendo o que os seus mestres mandaram. Pisou em quem tinha pudor e não aceitava as vilanias do poder. Calou-se, no momento, que era imperioso que se ouvisse sua voz. Jamais teve amigos de fato e nem amores verdadeiros. Acomodou-se a cada contexto, sempre dizendo que nada havia a fazer contra a ordem que também o oprimia. Não quis saber de ninguém e hoje anda esquecido, possivelmente largado por aí. Desempenhou o seu papel, ou melhor, o que considerou que era o que deveria fazer. Não recebeu aplausos, nem vaias. Simplesmente, emudeceu sem nunca ter falado. Paralisou-se, sem jamais ter dançado. Afinal, ele era apenas um impostor.
De acordo com o que eles pensam, construir a impostura é quase uma obrigação. Eles a fazem com tal denodo que, aos olhos de outros, ela passa com algo insofismável, uma verdade a quem todos devem reverenciar. É lógico que estes são os impostores hors concours, os que já ganharam todas as medalhas e medalhões de que falava Machado. Existem os aprendizes que nunca chegam lá e, ainda, os que gostariam de ser, mas não conseguem sequer se aproximar do desempenho dos que querem aprender. A gradação das imposturas é proporcional às mediocridades de seus autores e atores.
Um dos impostores que conheci é uma figura surreal. Se fosse possível retornar no passado, olhando-se para ele, sem ter tido qualquer contato anterior, ver-se-ia que havia algo estranho com o resultado final da composição de seu personagem. Ele não era alto e nem baixo, nem branco ocidental e nem negro brasileiro. Tratava-se de um moreno, tal como isto é entendido no país. Na verdade, um afro-europeu-indígena brasileiro com todas as nuanças que, como na maioria de nós, indicam o resultado histórico-biológico da miscigenação.
Seu fenótipo bastante comum, hegemônico no Brasil, tem pouco a ver com sua gestualidade. O problema é que esta era construída na contramão do que ele realmente significava. Em tempo, esta figura representava um papel. Vamos, com cuidado, porque, seguramente, cada um de nós também representava, sendo personagens do mesmo contexto! Sem esquecer, que há impostores de todas as cores, por razões óbvias, os mais brancos costumam praticar mais imposturas do que os de outras etnias. O padrão de tal comportamento é masculino, entretanto, nada impede que se encontrem mulheres exercendo o mesmo papel.
O problema é que quando me lembro deste impostor específico, recordo-me de tantos outros, tão diferentes e, absurdamente, tão semelhantes em gênero, número e grau. O que me obriga a escrever este texto não é maior ou menor dos que infestaram a República e que antes poluíam a paisagem do Império. Aliás, eles vagam por aí, de há muito, como o casaco de Gogol. São meio fantasmagóricos porque nem sempre se percebe o que realmente são. Eles têm nome, profissão e, normalmente, são muito conhecidos. Adoram aparecer, não aceitam o anonimato da maioria dos demais mortais. Querem que os contornos de seus corpos e gestos, inclusive orais, sejam mantidos na eternidade. Imaginam-se como entes superiores e destinados a se tornar exemplos e a ser reconhecidos por todos.
Os impostores não podem ser pobres em demasia. Precisam de algum dinheiro, para construírem seus personagens. Suas imposturas precisam de eco social, logo, só podem existir, havendo a demanda dos que querem ou precisam ser enganados. Dificilmente, são ricos de tradição. A riqueza é um monstro de duas cabeças. Numa, ela ostenta sua verdade nua e crua, só existe a riqueza, acompanhada da miséria e da mais violenta exploração do homem pelo homem. Na outra, ela é necessariamente uma impostura. Quando se tenta justificá-la, esbarra-se sempre no rio de mentiras que precisam ser contadas, tal como se faz com o vil metal. Os ricos impostores, normalmente, são os que jamais conseguiram esconder bem o modo de vida que resultou em tanto dinheiro.
O meu personagem não é rico, nem pobre. Aliás, detesta suas origens humildes, e faz o que pode para camuflá-las. Vive bem, mas gostaria de ter muito mais. Não mede esforços para chegar ao topo e dizer que venceu por efeito de sua competência. Bom, sabe-se que isto jamais será verdadeiro, mas, ele acredita e é o que basta para o seu ego. O bom impostor tem de ser crédulo na sua impostura. Se tiver dúvida, o disfarce pode cair e deixá-lo em maus lençóis. O seu comportamento precisa ser inabalável e ele terá sempre a resposta para qualquer questionamento.
Não sei por onde anda o meu impostor. Se estiver vivo, pelo tempo passado, já deve estar recolhido a sua insignificância pessoal. Nesta hipótese, será que ele recorda do que viveu naquela época? Será que, convenientemente, esqueceu de tudo? Duvido, eles não esquecem, o esforço da impostura demanda o de memória. O seu mundo precisa ser absolutamente arrumado, limpo e podado de qualquer coisa inconveniente. O que sei é que ele, como havia previsto, não deve ter chegado muito longe. Afinal, para o Brasil ele era negro.
Por aqui, ainda não gostam de afro-brasileiros na posição de maior comando. Mesmo que não sejam absolutamente negros. Sua impostura fundamental consistia em reafirmar uma ordem que o excluía, também. Tal como ele sabia e dizia, na mesma época. Obviamente, não tirava disso qualquer conclusão mais ousada. Um bom impostor é disciplinado, agüenta o tranco e não reclama, esperando sempre as sobras que irá sugar. Mesmo querendo ser o maior, ele aceita ficar no meio da estrada, pois conhece o seu verdadeiro lugar, que é determinado por alguém de maior poder. Imagine-se, no Brasil, um presidente negro! Agora, se pode falar que isto é coisa de americano ...
O meu impostor não tinha muita coisa especial. Seguiu o riscado de suas escolhas, fazendo o que os seus mestres mandaram. Pisou em quem tinha pudor e não aceitava as vilanias do poder. Calou-se, no momento, que era imperioso que se ouvisse sua voz. Jamais teve amigos de fato e nem amores verdadeiros. Acomodou-se a cada contexto, sempre dizendo que nada havia a fazer contra a ordem que também o oprimia. Não quis saber de ninguém e hoje anda esquecido, possivelmente largado por aí. Desempenhou o seu papel, ou melhor, o que considerou que era o que deveria fazer. Não recebeu aplausos, nem vaias. Simplesmente, emudeceu sem nunca ter falado. Paralisou-se, sem jamais ter dançado. Afinal, ele era apenas um impostor.
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